Por Paulo Coelho – Revista Planeta nº84
Expulso de diversas sociedades ocultistas, perseguido como pernicioso à moral e costumes vigentes (foi proibido de entrar na Itália, França e Inglaterra, sua própria pátria), inimigo daqueles que não traziam a público os mistérios iniciáticos de suas seitas, o principal traço de A Aleister Crowley foi democratizar o ocultismo. Para ele, o momento histórico contemporâneo exige a transformação urgente do esotérico em exotérico. Dono de uma força de vontade invejável, curtidor de todas as drogas e capaz de impressionar gente como Fernando Pessoa e Williatn Seabrook (“Crowley irradia poder semelhante ao de Gurdjieff”, dizia este), Aleister – seu nome mágico -, a Grande Besta do Apocalipse. Ainda hoje, seus textos influenciam várias correntes de pensamento da Terra.
Nasci em Stratford-on-A von. É uma estranha coincidência que um lugar tão pequeno tenha dado ao mundo seus dois maiores poetas – já que não se pode esquecer Shakespeare.” A forma de Aleister Crowley começar sua autobiografia já é capaz de dar uma idéia daquele que mais tarde viria a ser conhecido como “A Grande Besta do Apocalipse”, e responsável pelas grandes inovações na prática mágica do século vinte. Nascido em 1875 corri o nome de Edward Alexander, Crowley descendia de unia família de classe média inglesa, com pai e mãe de formação presbiteriana, responsável em grande parte pela revolta e indignação do filho desde os primórdios de sua vida. “Minha vida sexual logo se mostrou muito intensa, mas eu tinha aprendido que o sexo era um desafio à prática cristã era degradação e danação”, diz ele nas Confissões. No começo de sua adolescência, Edward Crowley – que trocaria seu primeiro nome para Aleister, por razões mágicas – foi enviado para uma escola sustentada pela comunidade religiosa de seus pais. Ali, leu pela primeira vez o livro Cabala Revelada, do escocês McGregor Mathers, que na época chefiava uma sociedade secreta conhecida como Golden Dawn. Crowley apaixonou-se logo pelo livro, principalmente pela incapacidade de compreender o que estava escrito, e a partir desta época os gostos e tendências do jovem estudante começaram a mudar: Edward Waite, Eliphas Levi e outros famosos ocultistas do século 19 passaram a ser sua leitura preferida. Para fechar o circulo, durante uma aula de química Crowley é apresentado a Sir Cecil Jones, um alquimista, que termina apresentando formalmente o pedido de inscrição de Crowley na Golden Dawn. Com a força de vontade que iria lhe acompanhar pelo resto da vida, ele começa a dedicar-se exclusivamente ao estudo das artes mágicas, fazendo o possível para galgar no menor espaço de tempo os dez graus de iniciação da sociedade secreta. Tudo indica que Aleister Crowley já nasceu um mago. Talvez tenha sido uma explosão de fogos de artifício que quase o matou, quando tinha 14 anos, talvez fosse mesmo reação ao ambiente familiar (como querem os estudiosos de sua vida), o fato é que Crowley possuia faculdades extremamente despertas. Seu senso de direção era mais desenvolvido do que o da maioria das pessoas, e sua capacidade de persistência e concentração deixava a todos boquiabertos. Nas aplicações mundanas de suas faculdades – montanhismo e xadrez – ele sempre era considerado um adversário de respeito, mesmo pelos mestres destes dois esportes. E foi com esta persistência e obstinação que Crowley começou a subir hierarquicamente dentro da Golden Dawn.
Despertar o gênio criativo
Seu primeiro grande questionamento a respeito das artes mágicas foi o de relacionar os fenômenos esotéricos com os desejos que movem o ser humano: poder, liberdade, conhecimento. “Eu logo aprendi que as condições físicas de um fenômeno mágico eram semelhantes ás de qualquer outro fenômeno. Quando se chega a esta conclusão, o sucesso fica dependendo apenas da habilidade de despertar em si mesmo o gênio criativo. O principal mal-entendido da magia reside no fato de que os vários elementos da operação tais como manifestações espirituais, nomes mágicos, segredos, armas e roupas – acabam por esconder o verdadeiro objetivo da magia, e terminam iludindo o próprio mágico”, diz ele, afirmando que a maioria dos magos acaba por esquecer a razão que os levou à magia. Desta maneira, Crowley achava – com toda razão – que os processos conscientes são sempre intencionais nos seres humanos; o homem não é, de maneira nenhuma, uma criatura passiva num universo ativo. Ele pode transformar a realidade em sua volta, desde que não se iluda nem com seu poder, nem com a nova realidade que irá criar. Por causa desta crença, a primeira atitude sua é questionar e reformular uma série de rituais da Golden Dawn. Sob o nome de Conde Wladmir Svareff – um de seus grandes sonhos era pertencer à aristocracia -, ele aluga um apartamento em Londres e começa a sua guerra dentro da sociedade secreta. Para aumentar mais ainda seu prestígio, vai até a Escócia e proclama a todos que irá realizar a Magia de Abramelin (1). Crowley, entretanto, jamais realizaria esta operação, já que a sua prática requer um certo isolamento e ele não era capaz de permitir-se a isto. Conta-se que, durante sua permanência na Escócia, a casa onde trabalhava conseguia ficar tão escura que Crowley tinha que acender as luzes para ler, apesar de ser pleno dia e o sol brilhar intensamente lá fora. Seu caseiro acabou ficando louco e foi acusado de tentar matar a própria mulher (2), Diante de certas pressões do lugar, Crowley abandonou a Escócia, brigou com o poeta inglês Yeats (que a esta altura também trilhava o caminho das artes mágicas) e foi para o México, onde dedicou a maior parte do seu tempo tentando fazer com que sua imagem desaparecesse do espelho.
O homem e seu planeta
A tarefa de dissipar a própria imagem pode parecer bastante infantil; entretanto, os escritos de Crowley desta época deixam bastante clara sua tentativa de descobrir novos horizontes para a aplicação da vontade. E como a vontade não opera no vácuo, era necessário um roteiro, um ritual, um drama, um propósito. “Para Aleister Crowley, a Grande Besta do Apocalipse, a magia é muito mais uma arte que uma ciência”, afirma Chris Ottis. Baseado nisto, Aleister Crowley resolve lançar mão de tudo que consiga enriquecer criativamente a realidade que o cerca. Encontra uma prostituta nas ruas da Cidade do México e faz dela imediatamente sua Grande Prostituta da Babilônia. Credita a si mesmo o título de “A Grande Besta do Apocalipse e publica vários livros. Encontra-se com Allan Bennet, que lhe ensina a prática da ioga e o introduz no misticismo oriental. Mais tarde, Crowley afirmaria que viu Bennet flutuando no ar, de pernas cruzadas, durante uma de suas meditações. Mas o México parece ser pouco para as incríveis pretensões da Besta: de volta a Paris, conta para Mathers suas experiências com ioga, sendo friamente recebido pela comunidade mágica da Europa – que parece desinteressada em qualquer novidade fora de suas bases ortodoxas, enquanto se preocupava com a notoriedade que Crowley estava ganhando. A esta altura, ele já é uma pessoa extreobjeto de um livro de Somerset Maugham, The Magicían. Procurando aumentar ainda mais esta popularidade, escreve uma carta à prefeitura da cidadezinha onde mora, reclamando a ausência de um prostíbulo nas suas redondezas. A carta ganha espaço em numerosos jornais, e o carisma de Crowley cresce. A partir desta época, o que a Grande Besta chama de “magia sexual” começa a ganhar espaço na sua vida. Correm rumores de amplas orgias nos vários endereços onde Crowley se instala. Ele mesmo casa-se com Rose, cunhada de Sir George Kelly – um famoso pintor que tinha se seduzido pelas artes mágicas – e propõe à sua nova esposa um casamento aberto, com ela podendo ter relações com quaisquer admiradores. No livro A History of Orgies (Hearst Corporation, 1960), Burgo Partridge fala de festas patrocinadas pela Grande Besta, onde “as mulheres, normalmente aristocratas, entravam no salão sob o disfarce de máscaras ou pinturas faciais. A partir daí, orgias indescritíveis começavam a acontecer.” A realidade deve ter sido bem diferente e bem mais simples; entretanto, o próprio Aleister Crowley alimentava as fantasias em torno de sua pessoa, para conseguir – como conseguiu – uma divulgação mais ampla de suas atividades e de seu trabalho.
O duelo dos grandes magos
Rose vem mudar por completo a vida da Grande Besta quando, no Museu do Cairo, sente-se inspirada e aponta para a estátua de Ra-Hoor-Khuit, um dos nomes do deus Hórus, e que tem no catálogo do museu o número 666. Rose começa a instruí-lo sobre como invocar Hórus, através de um ritual que ele próprio não acredita, mas que termina sendo coroado de sucesso. O resultado é a conversa com seu Anjo Guardião, e a psicografia do Livro da Lei, ditado por Aiwass. O Livro da Lei (3) é talvez o trabalho mais importante de Aleister Crowley. Resumo de vários conceitos sociais, religiosos e até mesmo políticos, em suas páginas se propõe a responder a uma série de perguntas para as quais a humanidade não conseguiu encontrar uma solução. O próprio Crowley afirma não entender grande parte do que lhe foi ditado, mas considera-o como o mais importante momento de sua vida, e se propõe a estudá-lo. A principal proposta da obra está na frase “Faça o que você quiser” (Do what Thy will),sugerindo uma nova era de liberdade aos conceitos humanos. Nas sociedades esotéricas derivadas ou associadas à filosofia crowleyana, o Livro da Lei é considerado a obra máxima do conhecimento. De volta a Paris, Crowlev procura afastar Mathers do seu caminho, proclamando-se o Grande Mago da Golden Dawn. Mathers promete enviar fortes correntes magicas contra o Grande Mago, e três cães de Crowley aparecem mortos. Este, por sua vez, clama haver invocado 49 demônios que arrasarão com Mathers, mas o duelo de magos termina apenas enfraquecendo politicamente a Golden Dawn. Crowley então funda sua própria sociedade secreta, a Silver Star ou A:. A:. passando a publicar o jornal Equinócio dos Deuses (que sai duas vezes por ano, no equinócio e no solstício), e revela os livros secretos da Golden Dawn. Desta forma, democratiza o conhecimento da magia. colocados seus segredos ao alcance de todos. Mas a Grande Besta ainda não está satisfeita com sua notoriedade, e procura ampliá-la ainda mais através de golpes de marketing que fariam inveja aos comunicadores de hoje. Publica um trabalho sobre sua obra, assinando como F. C. Füller, um general inglês; oferece, como se fosse uma instituição, um prémio de 100 libras para o melhor ensaio a respeito daquilo que escreveu. E com isto consegue despertar o interesse da intelectualidade européia. Em 1910, Aleister Crowley é iniciado no uso da mescalina e da heroína, criando uma série de sete ritos – Os Ritos de Elêusis – para utilizar a droga como forma de se obter o êxtase religioso (4). As pessoas que conheceram a Grande Besta nesta época são unânimes em afirmar que a quantidade de heroína que ele consumia (11 gramas por dia) se ria capaz de rnatar em pouquíssimo tempo qualquer ser vivo. Crowlev, entretanto, parece dotado de superpoderes, já que, além da extraordinária tolerância à droga, continua praticando o alpinismo. Ë desta época o relato de Showell Styles, no livro On The Top ofthe World: “O desafio era o monte Kanchenjunga, que deveria ser escalada pela primeira vez por cinco alpinistas – três suíços, um italiano e um inglês chamado Aleister Crowley. Crowley, que tinha sido escolhido para líder da expedição, era talvez o mais extraordinário praticante do alpinismo mundial. Ele era ostensiva-mente descuidado em tudo que fazia, como se não tivesse medo, e chamava a si mesmo de ‘A Grande Besta do Apocalipse’. Quando atingimos os 20.400 pés, no campo VII, os suíços convocaram uma conferência para destituir Crowley das funções de liderança, já que este era exageradamente cruel com os guias locais. Crowley não aceitou a idéia, e a expedição resolveu retornar, exceto pela Grande Besta, que continuou a escalada.
“Faz o que queres é tudo da Lei”
Na descida, os suíços foram pegos por uma avalanche que matou quase toda a expedição. Crowley, subindo, ouviu os gritos de socorro, mas recusou-se a ajudar quem quer que fosse. Mais tarde escreveria para um amigo seu, dizendo: “Acidentes em montanhas são muito desagradáveis: eu prefiro ficar longe deles”. Os poderes de Aleister Crowley também pareciam trabalhar a seu favor. Entre as muitas histórias narradas a seu respeito, conta-se que num assalto, em Calcutá, ele conseguiu ficar invisível diante dos ladrões. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Grande Besta vai para Nova York, onde cria uma pequena comunidade mágica em Greenwich Village. Sua força de vontade continua imensa – era capaz de comer e beber durante dias, para depois jejuar até que seu peso voltasse ao normal. Um escritor americano, William Seahrook, conta que Crowley irradiava um poder semelhante ao de Gurdjieff, com quem também tivera a oportunidade de estar. Certa vez, Seabrook pediu a Crowley uma demonstração de poder. A Grande Besta pegou seu amigo e os dois caminharam até uma parte relativamente deserta da Quinta Avenida, onde Crowlev passou a seguir de longe um dos transeuntes, imitando todos os gestos deste. A determinada altura, Crowley agachou-se e saltou para trás; o sujeito a quem imitava fez a mesma coisa, levando um tombo e estatelando-se no chão. Seabrook e Crowley foram ajudá-lo a levantar-se, enquanto o atônito pedestre procurava inutilmente uma casca de banana para responsabilizar sua queda. Apesar de todos estes poderes, a vida do Grande Mago da Golden Dawn, da Grande Besta do Apocalipse, ou dos outros vários títulos que Crowley atribuía a si mesmo, parecia estar entrando numa fase de declínio. Algumas complicações de ordem física fazem com que ele escolha Cefalú na Sicília, como sua próxima morada. Lá, resolve criar uma experiência social que culminaria sua obra mágica: a Abadia de Thelema. Criada dentro dos padrões do Livro da Lei, a abadia era o local onde qualquer expressão da vontade e do desejo eram permitidas. Vários escritores, atrizes e pessoas ligadas à arte e à cultura convergiram para os domínios de Crowley. Lá praticavam-se rituais que iam desde as mais simples invocações até a morte de animais e os ritos de fertilidade. Crowley escreve Diary of a Drug Friend, falando de seus experimentos com heroína, e as pessoas começam a comentar a respeito de orgias e drogas dentro da Abadia de Thelema. Uma mulher, Betty May, termina abandonando Cefalù e escrevendo um artigo para o jornal inglês Sundav Express, onde denuncia cópulas com animais e sacrifícios de sangue. As autoridades sicilianas, desgostosas, pedem a Crowlev que abandone o local. Daí por diante. o declínio da Grande Besta é inevitável. Expulso da Sicília, proibido de entrar na França e na Inglaterra, a Grande Besta é abandonada pelos amigos e aumenta seu consumo de heroína. Vem a morrer a 5 de dezembro de 1947, com 72 anos, e parecendo “um velho coronel aposentado”, segundo as palavras de Burt Welsh. À parte seu narcisismo exagerado e uma certa tendência para acreditar em super-raças (que mais tarde Hitler transformaria em ação), a obra de Crowley deixou uma marca indelével no pensamento do início do século. Sua própria “perversidade” não passava de um golpe publicitário, sedutor o suficiente para fazer dele uma figura notória – e a maior parte das pessoas que o conheceram afirmam que ele poderia ser chamado de um homem frio, mas nunca de um homem mau. Sua extensíssima obra – tanto em literatura como em artes mágicas – tornou acessível o conhecimento que antes era privilégio de uma elite, e ampliou a possibilidade de se chegar ao conhecimento através de outros caminhos, além daqueles que nos são permitidos em nossa formação ocidental. Não queremos dizer com isto que seus passos mereçam ser seguidos – Crowley pertence a uma outra época, e, hoje em dia, determinados exageros que ele cometeu seriam considerados coisas sem sentido e ultrapassadas. Mas o princípio de sua filosofia, “faça o que quiseres”, e um princípio bem antigo e bastante válido. Cada um o utiliza dentro das suas próprias possibilidades, e Crowley o utilizou para viver uma vida pelo menos diferente da maioria das pessoas de sua época. Se ele conseguiu o que queria – e acreditamos que não tenha conseguido – é irrelevante; seu nome ficará sempre ligado à quebra de tabus, e isto, por si só, já é uma grande vantagem. William James diz que um homem pode jogar um jogo durante vários anos, com um alto grau de técnica, sem que consiga progredir além de determinado estágio. Até que um dia, sem qualquer aviso, o jogo começa a jogar com o homem, e a partir dali ele não comete mais erros. Acreditamos que Aleister Crowley não tenha visto este dia, porque se perdeu nas próprias fantasias que criou; mas não tenham dúvidas de que chegou muito perto.
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NOTAS:
(1) – A Sagrada Magia de Abramelin é um livro atribuído a Abraão, e popularizado por Aleister Crowley. Trata-se de um ritual de seis meses que deve ser realizado numa casa isolada, com portas dando para o norte e o sul, e com um quarto e um terraço onde apenas o operador pode entrar. No final de seis meses de rituais (bastante simples, em sua grande maioria consistindo de preces), o operador invoca o seu Anjo Guardião e estabelece um diálogo com ele. A seguir, invoca as legiões de demónios, estabelecendo domínio sobre os Quatro Príncipes do inferno. (2) – A casa de Crowley na Escócia, conhecida como Boleskin, foi comprada pelo líder do conjunto de rock Led Zeppelin, Robert Plant. Plant se propõe a estudar a obra da Grande Besta, e há rumores de que estaria realizando a Sagrada Magia de Abramelin. (3) – O Livro da Lei tem uma tradução brasileira, que pode ser encontrada nas livrarias sob o titulo de Equinócio dos Deuses, Equinócio no Brasil, vol. 1, nº 1. Ë um trabalho sério, numa tradução perfeita, dando a dimensão exata da parte filosófica do trabalho de Crowley, que não nos foi possível analisar neste artigo. (4) – Mais tarde, Carlos Castañeda alcançaria renome internacional escrevendo uma série de livros onde a droga e a religião estão intimamente entrelaçadas.
Bibliografia: Revista “Planeta”, Março Nº 84.