Por Paulo Coelho – especial para a revista Planeta
Para quem deseja ver a magia se desenvolver na prática, bastam tempo (seis meses e mais uma semana de invocações), paciência, persistência e muita disciplina. É o que recomenda o incrível, misterioso, e ainda inédito no Brasil, livro da Sagrada Magia de Abra-Melin, o Mago, Conforme Ditado por Abraão, o Judeu, ao seu filho Lamech. Principal objetivo da sua prática. invocar e conversar com seu Sagrado Anjo Guardião e só depois mandar virem as legiões de demônios.
No ano de 1898, era publicado na Inglaterra um misterioso trabalho que logo se tornou a leitura favorita de todas as pessoas que participavam – ou se interessavam – por ciências ocultas: A Sagrada Magia de Abra-Melin, que descrevia uma operação mágica de seis meses de duração, findos os quais o operador invocava, durante urna semana, o seu Sagrado Anjo Guardião. Para isto, era requerida uma casa com certas características próprias, alguns poucos materiais (bastante fáceis de encontrar) e muita disciplina. Nada mais.
Desde então, várias pessoas se propuseram a realizar a operação descrita por Abra-Melin, inclusive o mago inglês Aleister Crowley – a quem se deve a popularização do livro junto às correntes esotéricas e filosóficas de hoje em dia. Crowley nunca levou a termo o ritual, mas outras pessoas o fizeram. Este artigo, além de dar as características gerais da operação descrita por Abra-Melin, publica ainda – pela primeira vez em língua portuguesa – trechos do diário cerimonial de uma das pessoas que se aventuraram na árdua – mas simples – busca do desconhecido.
O que é exatamente um ritual? Durante séculos a maior parte da raça humana acreditou que residia no ritual a verdadeira forma de comunicação com forças desconhecidas. O padre levanta a hóstia na missa e pronuncia palavras mágicas; o espírita senta-se numa mesa e faz uma oração invocando alguma entidade; o alquimista se debruça sobre vidros e retortas e decifra símbolos. No Oriente e no Ocidente, todas as culturas sempre tiveram uma série de movimentos e invocações para comunicarem-se com a divindade. Estes movimentos e invocações, porém, eram privilégio de uma casta – os sacerdotes – que podia fazer uso indiscriminado deles; quanto ao resto das pessoas, cabia-lhes quase sempre o caráter passivo de respeitar e temer os operadores do ritual. E daí nasce um fenômeno mais social que divino – a religião – onde os fiéis sempre estão dependendo de uma terceira pessoa para comunicarem-se com Deus e seus santos.
A verdade, porém, é muito diferente. Se analisarmos com cuidado, veremos que nossa vida está repleta de pequenos rituais: a forma de como se aproximar do chefe no trabalho, o modo de convidar alguém para a cama, a maneira de sentar-se à mesa para comer. O ritual ativa dentro de cada pessoa uma série de forças para enfrentar determinada situação. Mas não consiste na situação a ser enfrentada. Por isso, no caso do ritual religioso (que é o que nos interessa neste artigo), a maior parte das cerimônias coletivas são normalmente inúteis. Porque cada um tem uma forma de se comunicar com Deus e, na maior parte das vezes, esta forma é esquecida em função de algo mais em voga na estrutura social em que vivemos. “Cada um tem que criar sua própria religião”, dizia Tim Leary (1), referindo-se à forma como o homem esqueceu a essência dos rituais que ele conhece.
A popularização da misteriosa obra
No ano de 1898 era traduzido, pela primeira vez em língua inglesa, um misterioso livro onde o ritual de comunicação com a divindade era extremamente flexível em suas invocações. A obra sugeria uma rígida disciplina, algumas pequenas preces; mas, na maior parte do grosso compêndio, as próprias palavras do operador é que eram incentivadas. O livro era a versão impressa de um manuscrito encontrado na Biblioteca de Paris, e foi dado a público por McGregor Mathers, a principal figura da sociedade secreta Golden Dawn. Seu título era longo: O Livro da Sagrada Magia de Abra-Melin, o Mago, Conforme Ditado por Abraão, o Judeu, ao seu Filho Lamech. (2)
Alguns anos mais tarde, Aleister Crowley, já uma figura bastante conhecida do ocultismo do começo do século, iria popularizar a obra em toda a cultura esotérica do Ocidente. Crowley tentou realizar a operação descrita na Sagrada Magia … alugando uma casa às margens do famoso Loch Ness, na Escócia, e preparando-se para os seis longos meses de duração do ritual. Por uma série de razões de ordem prática, ele foi obrigado a interromper o processo e regressar a Londres, e nunca mais voltou a realizá-lo. Afirma, porém, que foi A Sagrada Magia … que o fez entrar em contato com a voz que lhe ditou O Livro da Lei, obra máxima da cosmogonia crowleyana.
A Sagrada Magia de Abra-Melin consiste numa série de anotações e regras que se estendem durante seis meses de recolhimento, culminando com uma semana de invocações, onde o operador ira encontrar e manter uma conversação com seu Sagrado Anjo Guardião. O livro está dividido em três partes. A primeira parte narra a, história de Abraão (que não é o mesmo da Bíblia), um homem que buscava o conhecimento. Depois de vagar por vários lugares, terminou encontrando num deserto próximo ao rio Nilo um eremita, Abra-Melin, que lhe ensinou as etapas do ritual. Abraão, realizou a operação com sucesso, e a difundiu nas cortes de reis da época (final do século 16).
Intuitos negativos, um perigoso risco
O livro começa chamando a atenção para o fato de que só deve dar início à operação aquele que tiver condições de conduzi-la até o final. O trabalho só pode ser interrompido em caso de doença séria de seu realizador, o que deve ser interpretado como um presságio divino. Além disso, é importante que a pessoa que irá realizar A Sagrada Magia … tenha sempre em mente que suas intenções devem ser orientadas no sentido de trazer mais paz e harmonia entre os homens – quaisquer intenções negativas, sérias conseqüências ao operador. Diz o texto: “Pondere bastante antes de começar, e só dê inicio à operação se você tiver a firme intenção de terminá-la. Porque ninguém faz impunemente uma pilhéria com Deus.”
Também fica estabelecido que só devem aventurar-se pela Sagrada Magia … aqueles que tiverem entre 25 e 50 anos de idade; e lembra que os seis meses de trabalho mágico devem ser realizados evitando-se ao máximo o contato humano, apesar de não impedi-lo por completo – exceção feita à semana final de invocações.
Não dormir enquanto há sol
Dito isto, o próximo passo será encontrar uma casa que tenha um quarto com janelas dando para o norte, o sul e o leste. A oeste deve ser construído um pequeno terraço; que será mais tarde coberto com areia do rio “tirada de uma profundidade de, no mínimo, dois dedos”. Em baixo da janela do leste deve ficar um pequeno altar de madeira, onde o operador colocará roupas limpas, incenso, óleo. (feito de materiais como canela e aloé também popularmente conhecido por babosa), um bastão feito com um galho de amendoeira e uma pequena lamparina de óleo de oliva.
Os seis meses de ritual são divididos em três períodos de dois meses, e a operação deve começar logo no dia seguinte à Páscoa. Durante os primeiros sessenta dias, tudo que o operador tem que fazer é acordar quinze minutos antes da aurora, banhar-se, vestir roupas limpas e entrar no oratório (que, a partir daquele instante, fica vedado a qualquer outra pessoa).
Durante estes dois meses, apenas as duas entradas no oratório são repetidas. Não há qualquer restrição no que se refere a relações sexuais com a esposa (ou marido), e a única coisa que o operador não pode fazer é dormir enquanto o sol ainda está no céu.
No segundo período de 60 dias a prece muda ligeiramente, e alguns detalhes são acrescentados: o operador deve lavar o seu rosto e suas mãos com água pura antes de entrar no oratório, e deve ir pouco a pouco se desligando da vida cotidiana. O sexo no casamento ainda continua livre, apesar de não ser encorajado.
Nos dois últimos meses do ritual, há uma mudança drástica. Agora, o operador deve rezar três vezes por dia: no alvorecer, ao meio-dia e no entardecer. Cada vez que entra no oratório, usa um robe de linho branco, e acende o incenso sagrado que ele mesmo fez. A prece muda, mas não aumenta de tamanho. O operador deve restringir à sua esposa (ou marido) e aos seus empregados os contatos com o mundo; ninguém mais é admitido na casa. Ele está proibido de qualquer trabalho servil, e deve passar seu tempo livre passeando na natureza e meditando sobre a Criação de Deus. Além disso, são reservadas quatro horas diárias para leitura de livros sagrados.
Terminados os seis meses preparatórios, a operação vai ser realizada. Na Semana de Invocações, um espelho é colocado no oratório, e ali o Sagrado Anjo Guardião deixa sua assinatura. O operador mantém a conversação com o Anjo e só depois os príncipes e legiões do inferno são invocados e submetidos. Todo o propósito da Sagrada Magia de Abra-Melin é fazer com que as forças infernais trabalhem para o bem da humanidade.
A experiência do Arraial do Cabo (RJ)
Na Páscoa de 1979, Cristina Maria iniciou, numa casa alugada em Arraial do Cabo (RJ), os seis meses todo este tempo ela manteve um Sagrada Magia … (3) Durante todo esse tempo ela manteve um diário, dos quais selecionamos alguns trechos que complementam esta matéria. A autora permitiu a publicação, considerando que um trabalho sério, honesto, e feito por alguém absolutamente saudável e integrado ao seu meio ambiente, pode permitir que as pessoas não apenas mudem seu ponto de vista sobre ritual e magia mas também se sintam encorajadas a acreditar que a sabedoria, a força e o real desejo de conhecimento – seja numa operação mágica ou num gesto da rotina diária – sempre hão de ajudar os homens a se compreenderem melhor entre si.
20 de março
A única coisa que me preocupa levemente é que todas as preces a serem realizadas durante os seis meses são para minha salvação. Portanto eu vou começar a terminar cada-prece com o Pai-Nosso. Hoje à noite choveu. E minha primeira visão do dia será debaixo de uma capa plástica.
1° de abril
Operação sendo mantida. Qualquer descrição das emoções e energias envolvidas seria fútil – porque não existem termos de referência, exceto para alguém que já fez o que estou fazendo.
17 de abril
Operação sendo mantida. Estou lendo o Novo Testamento e agora acredito no verdadeiro Ato de Jesus.
“Fluxo de energia entre a pineal e a pituitária”
Antes de sua crucificação, o homem não era capaz de perceber, na sua consciência diária, a divindade do, Espírito, que só pode ser sentida, solta e integrada através da vida no corpo de Cristo. Será isto a significação heráldica da Era de Peixes com Tiphareth? Será que a Era de Aquário contém a promessa de elevar a humanidade Chesed e Geburah? Qualquer que seja a resposta, INRI ainda contém a Divina Lei. Há um mistério sublime e divino na morte de Cristo. Para o Homem Verdadeiro a comunhão deve ser um ato da vida diária. Só por Ele (se você entende Sua Palavra) você chega a Deus, mesmo que alguém nunca tenha ouvido Seu Nome.
1° de maio
Estou exausta. Quero dormir e dormir. Minha cabeça precisava estar acima das nuvens, e do céu, mas eu não posso fazer nada neste momento, exceto cuidar de mim. Minha cabeça dói. Ontem à noite senti um fluxo de energia entre a pineal e a pituitária, que deve me proporcionar total psiquismo e terceira visão. Veremos. Senti também que a dor se movia alguns centímetros, mas logo voltava ao lugar.
7 de maio
Minha força está voltando. Ocasionalmente senti uma sensação de algo queimando, junto com a dor de cabeça.
15 de junho
Tenho me torturado e me amedrontado, e pouco compreendido de tudo isto. Tenho tido visões incríveis e lutas insuportáveis. Mas hoje à tarde entendi o mistério do Templo de Baixo e do Templo de Cima.
21 de junho – Solstício
Sinto horríveis dores de estômago nestes dias. Estou profundamente consciente da realidade das energias astrais-mentais, emanando de mim. Tento colocá-las dentro de uma total disciplina, evitando, inclusive, que elas emanem sem minha vontade.
28 de junho
Hoje à noite, no oratório, senti que a minha faculdade mental ficou temporariamente fora de controle e tive que fazer um monstruoso esforço para dominá-la novamente. Mas isto fez com que eu entrasse em contato com a mônada, a minha superalma, o meu Espírito – contato, apenas, e não unidade.
16 de julho
Durante estes dias tenho pensado em mencionar algo alertando aqueles que possam vir a ler este diário (??). No que se refere à operação, esta é a coisa mais difícil e mais amedrontadora possível; além de coragem, requer uma inteligência espiritual para prevenir uma inevitável autodestruição. Se alguém está considerando realizá-la, aconselho veementemente a meditar sobre isto no mínimo um ano antes de começá-la.
3 de setembro
A energia está “fluindo contra” mim (o mundo?) e estou tendo grande dificuldade em controlá-la, apesar do I Ching sugerir que graça é apropriada. Várias alucinações têm me acompanhado durante todos estes meses. Pesadelos, coisas assim. No começo, as pessoas se aproximavam da gente – eu e meu marido – e ficavam tremendo. Agora elas já nem se aproximam.
“Será que tudo. Não passa de fantasia?”
Invocação do Anjo Guardião (21 de setembro / 27 de setembro) (4)
Acordei e fiz a consagração. O tempo tinha subitamente esfriado. Apesar das instruções de Abraão não estarem claríssimas, eu as aceitei como se estivessem, e coloquei minha intuição trabalhando. Depois de um dia tenso e desagradável, a atmosfera melhorou. Passei o resto da noite rezando, pois amanhã vou saber se os seis meses de trabalho foram aceitos por Deus. Nesses seis meses eu aprendi muitas coisas: coisas que eu já sabia conscientemente, mas que pela primeira vez vieram a fazer parte de mim. Estou nervosa com a visão pela frente. Temo não consegui-la.
Terceiro dia de invocações – Estou num limbo total. O que sou eu? Onde preciso ir e o que fazer? Quão alto (ou baixo) eu consegui me iniciar? Será que rezar o tempo todo é uma forma de arrogância? Será que tudo isto é apenas fantasia?
16h45: Que tola sou. Tudo ocorre da forma. que Abraão descreveu. Eu tive uma completa conversação com meu Sagrado Anjo Guardião. Estou calma. Tudo está claro no que se refere às conjurações. Meu Anjo Guardião é santo e correto, me elevou e me compreendeu. Devo colocar minha mente em um lugar alto, pra aproveitar esta conversação. Ele me explicou várias coisas que eu queria saber, e me fez sentir embaralhada e tola diante de sua presença.
Sétimo dia de invocações – Tudo ocorreu como descrito por Abraão. Esta manhã eu completei as conjurações e fiz todos os juramentos exigidos. Com a ajuda de meu Anjo, submeti os príncipes e seus servidores, apesar destes serem mais rebeldes que seus lideres. Dois deles mostraram-se difíceis, mas logo se comportaram. Abraão avisa que alguém sempre é aprendiz no começo, e Mestre no fim. Portanto, daqui por diante gastarei meu tempo aprendendo a Arte. Isto é (noto o estilo medieval!) um milagre. Durante todo este tempo, nada aconteceu errado. E agora, com um pouco de sofisticação – apesar de ainda estar aprendendo a verdade – eu gostaria de dizer que a Confiança é a coisa mais maravilhosa que pode acontecer com o ser humano.
NOTAS
(1) – In Politics of Ecstasy, de Timothy Leary, Granada Publishing Ltd., 1970.
(2) – The Book of The Sacred Magic oJ Abra-Melin, the Mage, as Delivered by Abraham the Jew unto his Son Lamech, traduzido por S. L. McGregor Mathers de um velho e raro manuscrito francês na Bibliothèque de L’Arsenal, em Paris. Editado nos Estados Unidos por L. W. Laurence Company Inc., Chicago, 1948. O livro não é tão difícil de se encontrar, e pode ser adquirido em várias livrarias especializadas no assunto, em toda a América do Norte. Entretanto, é desaconselhável tê-lo em casa desde que a pessoa não pretenda realizar o ritual.
(3) – Para proteção da pessoa indicada, todas as informações contidas neste início de parágrafo foram propositadamente trocadas. O diário completo da operação, porém, será publicado brevemente.
(4) – Por motivos técnicos, tivemos que resumir esta semana de invocações, da mesma maneira que pinçamos apenas alguns trechos do diário. Este tem mais de duzentas páginas, datilografadas em espaço dois. Descreve minuciosamente todas as reações físicas e psíquicas de sua autora, além de aventurar-se por segredos relacionados com ocultismo. A linguagem, apesar de fácil e cotidiana, sofistica-se bastante quando o diário aborda temas místicos.