O Banimento do Cão do Mal

Por Frater Arthur

Pode-se afirmar que o ramo hoje denominado egiptologia teve seu início no final do século XVIII, sendo, incrivelmente, Napoleão Bonaparte1, que em suas campanhas militares, levou consigo estudiosos e cientistas que documentaram monumentos, artefatos e inscrições egípcias, tendo como resultado a obra Description de l’Égypte, que teve mais de 20 volumes publicados entre 1809 e 1829, culminando no interesse europeu pelo “Antigo Egito”.

É importante ressaltar que, no início do século XIX, recém-saída do que hoje chamamos de Revolução Francesa, a França era o epicentro das ideias iluministas e ditava o ritmo das transformações políticas e sociais na Europa2. O francês era visto como idioma de sofisticação e saber, amplamente falado nas cortes europeias, sendo considerado um idioma global até o final do século XIX e meados do seguinte — tal como ocorre com o inglês hoje, que, contudo, preve-se perca de espaço, especialmente em razão de fatores econômicos ligados à Ásia.

A famosa Pedra de Roseta foi descoberta em 1799 por soldados franceses durante as excursões napoleônicas e decifrada em 1822 pelo linguista francês Jean-François Champollion.

Ou seja, afirmo categoricamente que o Museu Britânico deve , e muito, aos comedores de caramujo.

A publicação do livro Précis du système hiéroglyphique des anciens Égyptiens, em 1824, pelo mesmo linguista, aprofundando e explicando o sistema de hieróglifos, possibilitou a transformação da egiptologia de mera especulação para uma ciência linguística e histórica. A partir de então, restou aos pilantras de plantão recorrer a novas fontes, como a Atlântida e a Lemúria.

A partir de 1850, começaram a surgir expedições acadêmicas mais recentes ao Egito, levando ao surgimento de departamentos de egiptologia dentro dos museus. Pode-se dizer que o campo se consolidou fortemente no final do século XIX, tendo como um de seus maiores estudiosos o estimado E. A. Wallis Budge (27/07/1857 – 23/11/1934), que durante 27 anos dirigiu o departamento de antiguidades asiáticas e egípcias no Museu Britânico.

Em 1888, ocorreu a fundação da famosíssima Hermetic Order of the Golden Dawn, que contou com diversos intelectuais e políticos da época entre seus membros, inclusive W. B. Yeats, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1923.

É corriqueiro que eu me pegue pensando na importância da Ordem no desenvolvimento da egiptologia. Há rumores de que Budge auxiliava os membros da Ordem em suas pesquisas, permitindo-lhes acesso aos materiais do Museu Britânico. Creio ser seguro afirmar que, no mínimo, trocavam figurinhas. Tamanha era a importância da Golden Dawn no alvorecer da egiptologia que Florence Farr, Soror Sapientia Sapienti Dono Data (SSDD), iniciada no templo de Londres, publicou seu ensaio ‘Egyptian Magic: An Essay on the Nature and Applications of Magical Practices in Pharaonic and Ptolemaic Egypt em 1896’. Questiono-me também quantos “estudiosos do oculto” hoje em dia realmente se dedicaram a ler as fontes originais, ou sequer a tradução para o português.

Podemos tomar como exemplo, em relação aos membros da Ordem e ao Museu Britânico — ou, ao menos, de sua erudição sobre o assunto — o Papiro de Harris, datado do reinado de Ramsés III (XX dinastia, cerca de 1150 a.C.). O Papiro Harris I foi adquirido por Anthony Charles Harris por volta de 1855, após sua descoberta em uma tumba em Medinet Habu, e vendido ao Museu Britânico em 1873, registrado como EA 999. Sua primeira publicação ocorreu em 1876, por Samuel Birch, curador do Museu Britânico, e foi republicado por Budge em 1906. O documento inclui fórmulas de louvor e proteção divina, bem como práticas religiosas para manter a ordem e afastar demônios.

Em seu ensaio de 1896, Florence Farr apresenta um ritual de banimento cuja fonte é o Papiro de Harris, que carinhosamente denomino como ‘banimento do cão do mal’. Reproduzo aqui a fórmula traduzida do livro de Farr para o português3:

“O ritual deve ser realizado nos pontos Sul, Norte, Oeste e Leste, com a formulação 4de um guardião na forma de um cão, que deve ter aparência terrível diante de toda e qualquer força atacante. Abaixo, a tradução para o invocação:

Surja, cão do mal, para que eu possa instruí-lo em suas obrigações. Tu estás aprisionado. Confessa que assim é. Foi Hórus quem assim decretou. Que sua cara 5seja terrível como a tempestade partindo o céu. Que suas mandíbulas se fechem impiedosamente. Sacrifique como o deus Her-Shafi6. Massacre como a deusa Anat7. Que teu pelo se eriçe como labaredas de fogo. Sê tu grandioso como Hórus e terrível como Seth. Igualmente ao Sul, Norte, Oeste e Leste — toda a terra pertence a ti. Nada deverá deter-te enquanto estiveres em minha defesa, enquanto proteges meus caminhos, opondo-te aos meus inimigos. Eu te concedo o poder do banimento, de tornar-te imperceptível e invisível. Porque tu és meu guardião, corajoso e terrível.”

E assim encerro a minha tradução.

Eu tive contato com esse banimento pela primeira vez na versão exposta no livro do Regardie8, como parte da bibliografia do CDJ, e o utilizei em conjunto com o ritual da Torre de Vigia de Anúbis (Codex 18 do Círculo). Ambos os rituais se mostraram extremamente poderosos e versáteis, especialmente em momentos nos quais não se pode realizar um RmPB. Na época, ainda não conhecia, ou não havia sido liberado, o banimento do ALGR, pelo Frater Goya.

É importante que se visualize o cão da forma mais terrível possível, mas sem temê-lo, e que o faça da forma mais sanguinária que consiga imaginar. Quando o cão do mal entra em campo, não é momento para gratiluz; deves agir sem dó e piedade, assim como comandas o cão a agir. Deve-se confiar no poder de destruição e putrefação de suas mandíbulas (nota 8).

À medida que se trabalhe com o animal, mais fluida e poderosa ficará sua visualização e eficácia, aumentando sua conexão. Em complemento com a Torre de Vigia de Anúbis, estarás diariamente ‘armado’ de poderosas defesas. Com o tempo, digo por experiência, o cão virá em teu auxílio mesmo sem o teu comando, e quando o vires, considera-o um aviso — seja andando à noite no escuro, em um bar, ou conversando com um ‘amigo’.

Ao se adquirir mais fluidez e maior sintonia, o cão pode ser usado para trabalhos à distância ou mesmo para outros tipos de tarefas. Recomendo, todavia, que se dê a licença para partir sempre que suaa missão esteja concluída.

Um aviso: sua atuação é terrível, tal como os míticos hellhounds, mas é assim que deve ser contra tudo e todos que se oponham em seu caminho. Nas palavras do profeta: ‘Golpeie duro e baixo, e para o inferno com eles (…)’.

Ademais, o contato com esse tipo de entidade e ritual serve para que o mago iniciante aumente seus poderes de visualização e se acostume mais com a formalidade e a forma ritualística da magia egípcia.

Quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir;

Que veja e que ouça.

Em L.L.L.L,

Fr. Arthur.

1 A campanha de Napoleão no Egito (1798–1802) foi uma tentativa de conquista contra a Inglaterra. Após uma invasão bem-sucedida em 1798, a rendição final francesa foi declarada em 1801, após um ataque conjunto de britânicos e otomanos

2 LYONS, Martyn. Napoleon Bonaparte and the Legacy of the French Revolution. London: Macmillan, 1994.

3 Tradução adaptada ao português brasileiro falado nos dias de hoje. Embora tenha mantido ainda certo floreio, como o uso da segunda pessoa ‘tu’ em vez de ‘você’ (comumente utilizado na região em que cresci, ao contrário do ‘tu’, mais frequente no Sul), o texto está mais próximo de um ‘vosmecê’.

4 Nota de Frater Arthur: na tela mental, visualização.

5 Ou face. Todavia, optei pela utilização do termo mais comum em minha região para discussões mais ‘acaloradas’.

6 Her-Shafi: Aquele que está sobre o lago, ou Hórus que emerge sobre o lago. Também pode ser dito como: ‘Faze sacrifícios como Hórus que emerge sobre o lago’. Esse verso traz a ideia do poder de putrefação e renovação, também ligado a Osíris.

7 Anata, ou Anat, é uma deusa da mitologia cananeia, associada à guerra e à caça, extremamente feroz e agressiva. Ela auxilia Baal a derrotar seus inimigos e é descrita como uma deusa que massacra e destrói os inimigos dos humanos que protege.

8 REGARDIE, Israel. Magia Hermética: a Árvore da Vida – um estudo sobre magia. São Paulo: Madras, 1999.

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