Tamagoshis Sonham com Carneiros Eletrônicos?

Para quem não lembra, em meados da década de 90, surgiu um brinquedo que era conhecido como bicho virtual. O nome dele era Tamagoshi e comia virtualmente, bebia virtualmente, dormia virtualmente e morria virtualmente. A única coisa verdadeira no brinquedo era o sentimento legítimo que a criança tinha quando seu brinquedo morria.

Tamagoshis Sonham com Carneiros Eletrônicos?[1]

Por: Frater Goya (Anderson Rosa)

 

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma do homem … levantou no mundo as muralhas do ódio … e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas duas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” Charles Chaplin, O Último Discurso.

 

            Para quem não lembra, em meados da década de 90, surgiu um brinquedo que era conhecido como bicho virtual. O nome dele era Tamagoshi e comia virtualmente, bebia virtualmente, dormia virtualmente e morria virtualmente. A única coisa verdadeira no brinquedo era o sentimento legítimo que a criança tinha quando seu brinquedo morria.

            Antes de começar a dissecar o drama da virtualidade na formação da juventude atual, é interessante sabermos um pouco mais sobre esse Tamagoshi. O brinquedo foi feito no intuito de divertir, entreter a criança. Mas no final, ele de certa forma escraviza a criança fazendo com que ela preste mais atenção nele do que no mundo a seu redor, tornando-o foco da sua realidade.

            Alguns mais puritanos, talvez vejam na minha argumentação algo de pobre, dizendo que os animais de estimação também escravizam e pedem atenção na mesma medida. Contra esse argumento, me resta dizer que os animais de estimação se dão na mesma medida a seus donos, em dedicação e afeição. Em contrapartida, os animais virtuais não demonstram qualquer afeição aos donos, lealdade, não possuem calor natural (fora superaquecimento ou vazamento de pilhas), e não são capazes de comportamentos inesperados.

            Segundo algumas teorias ocultistas, nem por isso menos válidas, a grande missão satânica não é capturar as almas dos pobres e indefesos humanos, mas sim fazê-los esquecer de sua origem divina. De que forma esse processo ocorreria? Conforme algumas especulações dos ocultistas modernos, a crença cega na tecnologia e na razão seriam grandes candidatos a esse posto satânico ou luciferiano[2].

            O exemplo mais simples a ser dado nesse momento é uma simples conta de somar, como uma conta de restaurante que vai ser dividida entre os amigos. Hoje em dia, quantas pessoas dividem o valor com dois ou três dígitos apenas de cabeça ou rabiscando num guardanapo? Certamente, mais do que depressa, alguém saca uma calculadora ou usa a do celular, para fazer o valor. Por que? A argumentação considerada válida diz que a calculadora é mais acertada que o raciocínio humano. Mas não é o homem aquele que cria a máquina? Não é o homem quem as programa? Não é o homem que as cria à sua imagem e semelhança?             O que acontecerá quando a primeira calculadora nos disser que 2+2 são 22? Teremos audácia de enfrentar o monstro mentiroso ou seremos a ovelha dócil que será devorada pelo lobo?

            Outro exemplo bastante válido atualmente está na Internet, o grande bolsão de informações onde se acha de tudo, com boa ou má qualidade. A maioria de nossos filhos, e nós mesmos é necessário admitir, faz seus trabalhos de escola ou busca informações na rede sem questionar a qualidade e a veracidade do material. Essa falta de critério é suficiente para corroborar o velho adágio de que “uma mentira contada muitas vezes torna-se uma verdade”.

            Toda essa introdução faz-me voltar ao tema de nosso pequeno ensaio que são os brinquedos virtuais. Quando, em meados da década de 90 fui apresentado aos Tamagoshis, um misto de espanto e desespero tomou conta de mim, pois estive frente a frente por alguns instantes, do que chamaria aqui de retrato da Besta. Devo salientar que não uso aqui o termo no sentido apenas religioso, mas no sentido de bestificação humana, onde o profano se torna santo e esquecemos de nós mesmos.

            Diante de mim estava uma criança com 7 anos, chorando pela morte de seu bicho virtual. A imitação da vida, imitava agora também a morte. Mas diferente da realidade, onde se morre apenas uma vez, ali a criatura morreria três vezes antes que fosse devidamente enterrada no fundo de uma gaveta ou virasse um chaveiro sem vida. Como uma mãe desesperada, a criança não conseguia assimilar o conceito de morte da máquina, separando o real do irreal, e inconformada com seu fracasso depois de tanta dedicação àquele pequeno ser, a criança chorou.

            A partir desse momento, fica bem claro algo que talvez tenha sido deixado de lado por pais incautos, que ali estava decretada a submissão humana do criador à criatura. Aos poucos, estamos sendo preparados para uma nova aurora da humanidade, onde homens e máquinas co-habitarão um mesmo espaço e longe de controlar, o homem se submete à sua criação, tendo mais cuidado com ela do que consigo mesmo. Aos poucos, nossas crianças são acostumadas com seres de silício ou apenas de bits e bytes, que exigem cuidados especializados.

         Você perdeu seu bicho virtual porque cuidou mal dele – diz uma mãe apontando o dedo acusador.

         Mas eu dei comida, limpei ele, botei pra dormir. – choraminga a criança.

E assim, sem divisão entre fantasia e realidade, a criança acordava no meio da noite cautelosa, para ter certeza que sua cria imaginária estava passando bem.

Longe de parecer excessivamente dramático, isso é apenas uma ante-visão de um futuro sombrio, onde acostumamos nossa descendência a servir uma máquina, e não a usá-la com sabedoria.

Aos Tamagoshi seguiram-se simuladores de seres humanos (The Sims), onde não apenas aprendemos a cuidar do dia-a-dia de uma família, mas nos submetemos aos caprichos randômicos de um ser inexistente e nem um pouco imaginativo. Deve-se salientar isso, pois qual é a gratificação de tanto cuidado pelo personagem virtual? Qual é a recompensa recebida? Um afago entre as pernas como fazem os gatos? Uma lambida no rosto, ou um simples abanar de cauda do cachorro amigo? Não. Nem isso é dado ao zeloso mantenedor. Os personagens virtuais não apenas deixam de interagir com o jogador, sequer olham para a pessoa do outro lado da tela, ignorando por completo seu criador…

Dessa forma, o ser virtual desvaloriza o ser humano que o programou para existir, e a pessoa, elo mais importante nessa corrente, aceita e abaixa a cabeça, pois o jogo deve continuar… Fazendo isso, cada vez mais aumentamos as fileiras dos alienados sociais, que largados em meio ao esquecimento do computador, deixam de satisfazer seus próprios desejos pessoais para satisfazerem aos apelos da máquina.

Em breve teremos homens e mulheres que se satisfarão em terem um pequeno andróide como filho, esquecendo-se da maravilha da gestação e dos prazeres de se criar o próprio fruto do amor. Fadados à extinção, daqui algumas centenas de anos, talvez debaixo de uma figura humana, a ser considerada uma lenda, tenha uma legenda dedicada ao Criador…

Como resolver essa equação? É necessário que se trate a tecnologia e seus frutos como divertimento com consciência e não com submissão. É preciso expandir a consciência humana para que ela se liberte do desejo da escravidão. É preciso compartilhar conhecimento e não mais mentir a si mesmo. É preciso filtrar e direcionar que futuro desejamos ter. A submissão às máquinas em troca de um prazer virtual, ou a liberdade de usar a tecnologia como um redutor de esforço humano? Mais que tudo, para se encontrar um futuro agradável à espécie humana, é preciso saber escolher.

            Note-se que esse discurso não é um apelo ao retorno para a idade das cavernas, mas sim um apelo à humanidade. É preciso que cada um de nós aja e sinta como um ser humano, e não como um escravo da tecnologia, que de instrumento libertador das labutas diárias tem se tornado um cruel feitor que nos castiga com bits de esquecimento.

 

Frater Goya

Ankh * Usa * Semb

Vida, Prosperidade e Saúde – Desejados mais que nunca!

 

Curitiba, 10/6/2004 00:37.

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[1] O título é uma alusão ao conto de Philip K. Dick: Do Androids Dream of Electric Sheep?, lançado originalmente em 1968, que deu origem ao filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides”.

[2] Aqui é interessante observar que usamos os termos luciferiano e satânico como símbolos do obscurantismo humano, e não apenas no conceito simbólico tradicional dos dois personagens.

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