Fonte: Terra Educação.
Uma viagem até Roma feita por um monge alemão, então desconhecido, e o pagamento de um empréstimo de um arcebispo a um grande banqueiro, estiveram por detrás dos começos do movimento da Reforma religiosa do século 16.
A ida à capital do papado pelo agostiniano Martim Lutero e a venda de indulgências autorizada pela Igreja Católica, episódios que ocorreram entre dezembro de 1510 e agosto de 1515, serviram como elemento de combustão para que um enorme protesto ético e religioso ecoasse pela Alemanha e, em seguida, por boa parte da Europa do Norte: era a Reforma Luterana.
Depois disso a cristandade ocidental dividiu-se entre católicos e protestantes e nunca mais a história da religião no ocidente foi a mesma.
Desgosto com Roma
Era uma oportunidade e tanto que surgiu para o jovem monge Lutero. Uma viagem a Roma. O motivo era uma desavença surgida entre várias casas agostinianas (dos monges agostinianos, ordem a que Lutero pertencia desde 1505) da cidade de Erfurt, na Turíngia. Tornou-se urgente recorrer ao arbitramento de alguém importante, um cardeal romano talvez bastasse para resolver a pendenga que surgira.
Ao invés de maravilhar-se com Roma, a capital da cristandade foi-lhe uma decepção. Lutero não deixou registro de nada artístico. Nenhuma das tantas obras dos tempos clássicos ou do Renascimento mereceu a atenção dele.
Horrorizou-se sim foi com as histórias que corriam sobre as indecências da família Bórgia (do Papa Alexandre VI, falecido em 1503, que comprou o cargo pontifício a troco de 15 mil ducados e teve quatro filhos com Vanozza Cattanei, mantendo ainda como amante a bela Giulia Farnese) e de outros altos figurões da cúria papal. Ao invés de encontrar a confirmação da fé na Cidade Santa, algo que reforçasse a sua crença, entendeu Roma como a revivência da antiga Babilônia, a Grande Prostituta do Velho Testamento.
Além disso, escandalizou-se com o costume romano de fazer as necessidades nas vias públicas, em qualquer das esquinas da cidade, e com a descarada exploração do sexo que se via por todos os lados. Ao retornar para Erfurt e depois para Wittemberg, na baixa-Saxônia, onde lecionou Filosofia Moral, sua consciência não mais descansou.
A ocasião da explosão de indignação dele deu-se, uns anos depois, quando um pregador chamado Johann Tetzel, um sermonista dominicano a serviço do arcebispo Alberto de Brandenburgo, apareceu no sul da Alemanha para propagar a venda das indulgências (Ablasshandel, em alemão).
Um negócio escandaloso
Tudo teria começado em 1513-4 com a ambição da dinastia Hohenzollern, da Prússia, em querer ampliar o controle sobre os arcebispados alemães. Aproveitando-se da vacância de dois importantíssimos postos, Alberto de Brandenburgo, que apesar de ter apenas 23 anos já ser arcebispo de Madenburgo reivindicou junto ao papado a acumulação das funções das dioceses de Mayence e Halberstadt. Pretensão tida como ilegal, mas contornável se amparada com dinheiro ofertado a Roma.
A confirmação dada pelo papa Leão X (da família dos banqueiros Médici de Florença), em agosto de 1514, custaria a Alberto de Brandenburgo a soma de 14 mil ducados, acompanhada de uma “concessão voluntária” de mais 10 mil ducados.
A intermediação do negócio entre o arcebispo e o papa foi reservada ao grande banqueiro Jacob Fugger, o rico (+ 1525), que naquela época praticamente detinha o monopólio das relações financeiras de Roma com os estados alemães (conforme A. Schulte, Die Fugger in Rom, tomo I, 1904). Foi para pagar os adiantamentos de Fugger que o papa Leão X concedeu a Alberto de Brandenburgo a permissão de vender indulgências ao preço entre oito e 9 ducados cada uma, nas dioceses do seu arcebispado.
A concessão, conforme determinou a bula papal de 31 de março de 1515, se entenderia por oito anos, sendo que o arcebispo e o pontífice dividiriam entre si os proventos alcançados repassando-os ao credor Fugger. Sendo que Leão X, com o que lhe cabia, pensava em acelerar as obras do Vaticano, então em construção.
Todavia, Maximiliano, o imperador do Sacro Império Romano Germano, desde que fora informado do acordo, exigiu sua participação, reclamando para si, durante os três primeiros anos, 1/3 do que fosse recolhido entre os crentes temerosos das penas eternas. O tesouro dos Santos Leia mais Martim Lutero » Um monge contra o papa Como poderia o papa autorizar a venda de indulgências que nada mais eram senão remissões concedidas aos possíveis pecadores? A prática de autorizar tal negócio não era nova na cristandade.
Acredita-se que remontava aos tempos das Cruzadas como um procedimento, ainda que eventual, tido como válido para amealhar recursos para financiar as expedições militares contra os infiéis muçulmanos. Por igual teria sido usado na época das Cruzadas contra os Albigenses, um grupo herético do sul da França, iniciadas em 1208. Todavia, foi somente no século 14 que as indulgências alcançaram uma explicação teológica defendida por Alexandre de Hales e Hugo de St.Cher.
Segundo eles, as obras e as ações dos santos e mesmo de Cristo deixaram um apreciável excedente de bons atos não usados inteiramente por eles. Havia, pois, um plus de santidade que teria formado um capital celestial, um tesouro dos méritos que estaria disponível aos interesses do Santo Padre.
De posse da chave, o papa podia recorrer ao Tesouro dos Santos armazenado no céu para poder distribuir o seu conteúdo entre os crentes. Havia dois tipos de indulgências: a plenária e a parcial. A primeira, a de maior preço, tinha a condição de transferir méritos o suficiente para livrar o possuidor de todas as penas da terra e daquelas do purgatório. A outra, a parcial, tinha prazo. Podia livrar alguém por alguns dias ou até mesmo por um milênio inteiro, tanto na terra como no purgatório. Um vendedor escandaloso Cartaz de Propaganda luterana mostrando o confronto entre Lutero (à esquerda) e Tetzel (comerciando as indulgências à direita). Tela de Lucas Cranach. Apesar de Johann Tetzel jamais ter posto os pés em Witemberg (cidadezinha onde Lutero lecionava Filosofia Moral na Faculdade de Letras da Universidade local), os ecos da escandalosa pregação que ele fazia em favor das indulgências (Ablassmissbrauch) chegou aos ouvidos de Lutero. Tetzel, um despudorado, assumira a função de uma espécie de arrecadador-geral do arcebispo de Mayence, o já citado Alberto de Brandenburgo, não tendo pejo de, em pleno sermão, fazer as ofertas mais incríveis para aqueles que hesitavam em dar sua prata em troca da remissão papal.
Se alguém não a quisesse para si, dizia ele, que lembrasse das almas dos parentes próximos que estagiavam por um demorado tempo no purgatório. Podiam, por módicos tostões, adquirir uma indulgência para a alma de um pai, uma mãe ou de um avô, que ainda estava num daqueles desvãos esperando a vez de partir para mais alto, para o céu, em direção ao paraíso. Porque deixá-las por lá, penando, se podiam resolver tudo de vez? Daí atribuírem a Tetzel o incrível e interesseiro verso: Sobald das Geld im Kasten klingt/ Die Seele aus dem Fegefeuer springt! (Assim que tilinta o dinheiro na caixa/ A alma salta do Purgatório [em direção ao Paraíso]).
Foi essa desfaçatez explícita de Tetzel que fez com que o desconhecido monge, doutor em teologia por Leipzig desde outubro de 1512, se insurgisse vindo a publicar, no dia 31 de outubro de 1517, suas famosas 95 teses na Schlosskirche, na porta da igreja do castelo de Wittemberg denunciando a venda das indulgências como uma atividade ilegal e imoral, visto que a salvação era assunto privado da relação do crente com Deus, não concebendo nenhuma intermediação entre eles.
Foi o começo do que os alemães denominaram de Ablassstreit, a polêmica sobre as indulgências, A partir de então, transformado na voz indignada de quase toda a Alemanha, Martim Lutero passou a liderar o Movimento da Reforma.