Giordano Bruno: o martírio de um sábio

A execução de Bruno pelas Inquisição representou o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência.

Fonte: Terra Educação

A execução do filósofo e cientista Giordano Bruno pelas chamas da Inquisição Romana no ano de 1600, foi um dos acontecimentos mais dramáticos da época do Renascimento. Para alguns representou o fim da tolerância da Igreja Católica para com a dissidência representada por alguns sábios, para outros foi o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência num confronto que não teve mais fim. “Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago…” Búrquio, num diálogo de G.Bruno, in”… do infinito, do universo e dos mundos”, 1584.

A execução de Bruno Giordano Bruno

Era o dia 17 de fevereiro de 1600 quando o lúgubre cortejo saindo da prisão da Inquisição, ao lado da Igreja de São Pedro, seguiu pelas ruas de Roma até chegar no Campo dei Fiori, uma praça onde uma enorme pilha de lenhas amontoava-se ao redor de uma estaca fincada no terreno. Era a fogueira que iria abrasar vivo o filósofo Giordano Bruno. Trouxeram-no com uma mordaça na boca por temerem que ele pudesse dirigir algumas palavras perigosas ao povo que se juntava a sua passagem. Ao oferecerem-lhe o crucifixo para o beijo derradeiro, revirou os olhos.

Em minutos, ao embalo das preces dos monges de San Giovanni Decollato, o verdugo jogou uma tocha na base da pira que, num instante, devorou-lhe as carnes. Estava feito.

Talvez, naquele instante derradeiro, ele recordasse as palavras que certa vez escrevera num momento de profunda melancolia: Vejam, prognosticou Bruno, o que acontece a este cidadão servidor do mundo que tem como o seu pai o Sol e a sua mãe a Terra, vejam como o mundo que ele ama acima de tudo o condena, o persegue e o fará desaparecer. Morto aos 52 anos de idade, tornou-se um mártir do livre-pensamento, e um símbolo da intolerância da Contra-Reforma liderada pela Igreja Católica.

O processo da Inquisição

Os agentes do Santo Ofício prenderam-no oito anos antes em Veneza, cidade onde o filósofo respondeu ao primeiro processo que a Inquisição lhe moveu. Sabe-se com detalhes deste episódio porque a documentação foi publicada em 1933, por Vicenzo Spampanato (*). Giordano Bruno, que há anos vivia no exterior, teria retornado à Itália em razão de um embuste. Uma dupla de livreiros, atendendo a um desejo de um nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, ao encontrar Bruno na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1590, convidou-o para vir à cidade dos doges a pretexto de ensinar a mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória (tida como atividade mágica, herética), na qual ele era um perito.

Uns tempos depois da sua volta à Itália, devido a um áspero desentendimento, Mocenigo trancou-o num quarto da sua mansão e chamou os agentes do tétrico tribunal inquisitorial para levarem-no preso, acusando-o de heresia. Encarceraram-no na prisão de San Castello no dia 26 de maio de 1592.

Na primeira vez em que o interrogaram, Bruno conciliou. De nada lhe serviu. Em seguida, o Santo Ofício de Roma, alegando soberania em casos de heresia, exigiu que o Doge, o governante de Veneza, mesmo a contragosto, lhe enviasse Bruno algemado. Enquanto não se deu o translado, além de terem-no torturado, colocaram-no num espantoso calabouço. Era um poço imundo, úmido e escuro como breu, cavado num porão a beira do canal.

A viagem a Roma, ainda que a ferros, deve ter-lhe parecido um alivio. O interrogatório e o ultimato de Giordano Bruno Em 27 de fevereiro de 1593 ele chegou à prisão papal. Seguiu-se então um longo e morníssimo processo, onde os inquisidores não sabiam bem o que fazer com ele. Interrogou-o Roberto Bellarmino, o jesuíta que, anos depois, em 1616, já Cardeal, iria também acusar Galileu Galilei.

Sujeitaram-no a vinte e uma entrevistas. Ocorreu que nestes anos em que passou encarcerado, Bruno mudou sua posição. O confinamento, a má comida, o frio permanente e a constante espionagem dos seus vizinhos de cela (nos processos encontram-se citados mais de cinco testemunhos deles), ao invés de enfraquecerem-lhe o ânimo, tiveram um efeito contrário. Além de aumentar o desprezo de Bruno pela Igreja, endureceu-lhe a posição: “não creio em nada e não retrato nada, não há nada a retratar e não serei eu quem irá se retratar!”.

Infelizmente, não foi esse o entender definitivo da Congregação do Santo Ofício, que se reuniu em 21 de dezembro de 1599, presidida pelo Papa Clemente VIII. “Os padres teólogos”, determinou o documento final, “deverão inculcar no dito frade Giordano (Bruno era frei dominicano, mas não mais vinculado à ordem), que suas proposições são heréticas e contrárias à fé católica… Se as rechaçar como tais, se quiser abjurá-las, que seja admitido para a penitência com as devidas penas. Se não, será fixado um prazo de 40 dias para o arrependimento que se concede aos hereges impenitentes e pertinazes. Que tudo isso se faça da melhor maneira possível e na forma devida”.

A leitura da sentença Cabalística atraiu Bruno Exigiram a rendição final de Bruno: se abjurasse deixavam-no vivo. Ou então o excomungavam e, em seguida, o entregavam ao braço secular para que aplicasse a sentença de morte, “sem que o sangue fosse derramado”, isto é, o queimassem. O papa esperava um triunfo.

A capitulação de Bruno teria um notável efeito propagandístico num ano da “graça” como o de 1600, troca de século. Ele rejeitou. Conduziram-no, então, à praça Navone para escutar a sentença no dia 8 de fevereiro. Ajoelhado em frente a nove inquisidores e ao governador da cidade, disse-lhes: “vocês certamente têm mais medo em pronunciar esta sentença do que eu em escutá-la!”.

O temperamento de Giordano Bruno

Afinal de contas qual era a causa desta infeliz celeuma? Testemunhos disseram que muito do desenlace infausto, para Bruno, e para a Igreja Católica, deveu-se à maneira de ser do filósofo. Bruno, um italiano de Nola, perto de Nápoles, onde nascera numa família da pequena nobreza local em 1548, era um temperamental, um tipo vulcânico, dado a formidáveis explosões coléricas. Para um homem que se considerava em missão, ele era um desastre. Se medisse as palavras, se fosse mais sutil em defender suas idéias, mais sedutor, talvez escapasse daquele fim terrível. Provavelmente, como em tantos outros casos, o manteriam na prisão, e só o queimariam em efígie. Mas o monge era um polemista nato, vibrante, desaforado, um iconoclasta.

Arrogante, disse aos inquisidores que já começara a duvidar dos dogmas da Igreja ao entrar no mosteiro aos 17 anos, e que sabia bem mais teologia do que todos os que o interrogavam. Giordano Bruno: errante e cosmopolita Ao ver desde cedo fechada a carreira acadêmica e sacerdotal ao ter sido ameaçado de excomunhão aos 28 anos (ele entrara como noviço no Mosteiro de San Domenico Maggiore, onde Tomás de Aquino morrera), Bruno, como se fora um cigano, tomou a estrada da vida.

Forçou-se, desde então, a peregrinar de cidade em cidade, tornando-se um cosmopolita a contragosto. Estar em Londres ou em Praga, em Wittemberg ou em Paris, era-lhe indiferente. Monge errante e renegado, a corte do rei francês ou um salão de conferências de uma universidade alemã não lhe causava estranheza. Qualquer lugar lhe bastava. Tanto é assim que ficou conhecido por ter dito que: “Al vero filosofo ogni terreno è patria”, ao verdadeiro filósofo qualquer terreno é a sua pátria. Nada, pois, espantar-se em morar ele em Genebra, graduar-se em teologia em Toulouse, e logo ingressar no Colégio dos Leitores Reais de Paris. Não eram só as fronteiras dos reinos e dos principados que ele ignorava. Estar a Europa envolvida na Grande Guerra Civil Teológica travada desde 1517 entre católicos e protestante, não o abalava.

Nada viu de mal em ser católico e ao mesmo tempo ingressar numa congregação luterana na Alemanha. Ele desconfiava dos césares que queriam unificar a Terra dotando-a de uma só lei e uma só fé, deplorando as técnicas que faziam com que os povos se aproximassem exageradamente. A simples existência das montanhas e dos mares, para ele, era uma advertência feita pela natureza para que cada povo fosse mantido no seu devido lugar.

Melhor que assim fosse para manter-se a paz. Bruno, enfim, opunha-se à globalização, o que não deixa de ser contraditório para quem queria derrubar os muros que punham limites ao universo, mas aconselhava a manutenção deles aqui na Terra. A intolerância das Igrejas Cosmo de Copérnico A Igreja Católica, por sua vez, via-se atolada numa interminável batalha de trincheiras, secular e teológica, contra a Igreja Reformada.

Não foi sem razão que fez da Companhia de Jesus, fundada e mantida em disciplina militar pelo soldado espanhol Inácio de Loyola em 1540, a sua espada. Era um exército de uniforme preto, voltado para ação, para o assalto às fortalezas da heresia.

O Alto Clero Romano, e a corporação sacerdotal em geral, tornara-se, no decorrer do século 16, extremamente sensível às críticas, reagindo com brutalidade contra quem ousasse desafiar-lhe a autoridade ou colocasse em dúvida os seus dogmas. A curiosidade, a bonomia, e a tolerância, com que muitos papas do passado trataram o ceticismo e a incredulidade de muitos homens sábios, desapareceram com a morte de Leão X, em 1521. Provocada por este clima radical de vida e morte, era natural que a Igreja Católica, como a Reformada, exigissem de todos posições bem definidas, a favor ou contra. Quem se mostrasse ambíguo ou neutro, era potencialmente um inimigo a quem não se concederia nem perdão, nem quartel.

Até o grande Erasmo de Roterdã, o maior homem de letras daquele século, que falecera em 1536, e que tentou o quanto pôde manter-se eqüidistante, equilibrando-se entre as duas fés hostis, sofreram a dolorosa experiência de ver-se vilipendiado por ambos as partes.

A utopia de Bruno

O filósofo, porém, imaginou que se seguissem suas prédicas públicas, como a que fizera em Oxford, em 1583, enaltecendo a doutrina de Copérnico e manifestando-se a favor da restauração da magia e do hermetismo (a linguagem dos sábios egípcios do passado remoto), as brigas cessariam. Olimpicamente desconsiderou o cisma que então dividia o mundo cristão. Luteranos e católicos deixariam de se odiar, sonhou, se abraçassem à verdadeira religião nascida à sombra das pirâmides.

Repetindo Marcilio Ficino, o filósofo renascentista que fundara a Academia Platônica, morto em 1499, gostava de lembrar que a cruz era, bem antes da crucificação de Jesus, um símbolo sagrado de Isis, e fora bordada no peito de Serápis. Numa memorável invocação que fez a Asclepius (Esculápio), após descrever o cenário de um mundo melancólico, sofrendo de total inversão, onde “as trevas sepultarão a luz”, e só “permaneceriam os anjos perniciosos”, Bruno não duvidava que Deus poria fim a tal mancha, “chamando para o novo mundo a sua antiga fisionomia”. Isto é, restaurando o culto egípcio.

Ele criticava o cristianismo ter destruído as honoráveis religiões do passado, pois eram tesouros de conhecimentos imemoriais.

Vira em Hermes Trimegistro – um imaginário sacerdote egípcio que, pela santidade da sua vida, pela dedicação aos cultos divinos, e majestosa dignidade, consagrara-se como Três Vezes Grande – o fundador da prisca theologia, a teologia antiga, de onde todas as outras derivaram.

A doutrina heliocêntrica de Copérnico, que ele difundiu em incontáveis e sensacionais conferências nos meios acadêmicos europeus, pareceu-lhe, pois, um sinal do inevitável retorno às crenças desaparecidas. A doutrina de Copérnico Para Bruno o grande astrônomo polonês, ao colocar o Sol no centro do Cosmos, restaurara a antiga deidade egípcia, restabelecendo o seu incomensurável fulgor.

O entendimento que Bruno tinha, pois, da cosmologia de Copérnico estava mais próximo de um profeta, nada se assemelhando ao de Galileu (este sim o fundador da física moderna, apoiada na matemática, na geometria, e na observação direta, via telescópio, dos fenômenos celestes). É provável que Bruno tenha percebido as implicações últimas da adoção do heliocentrismo.

O poder da Igreja, defensora da velha concepção cósmica (o geocentrismo de Ptolomeu), não ficaria inerte perante a pregação do filósofo. Mesmo assim Bruno foi em frente, talvez, a fazer juz ao que certa vez ele aconselhara a um admirador a quem escreveu: “Persevere, caro, persevere! Não te desencoraje, nem recue jamais porque, com o socorro de múltiplas maquinações e artifícios, o grande e solene senado da ignorância disfarçada, ameaçará e fará destruir o divino empreendimento do teu grandioso trabalho”.

Antecipando o livre-pensar

Situando-se na tradição renascentista dos simpatizantes da magia e do ocultismo, Bruno acreditava na liberdade, na tolerância, e no direito de dizer-se o que se pensa. Era, enfim, um entusiasta do Discurso da Dignidade do Homem de Picco de la Mirandola. O fascínio que tinha por formas e maneiras diversas de perceber-se o mundo (interessou-se inclusive pela cabala judaica), derivou dele ver o universo, lembrou Jacques Attali, como que “composto por um número limitado de letras elementares em formas geométricas, triângulos, quadrados, círculos, pirâmides curvas, etc.” Servindo também estes outros caminhos, como uma maneira para encontrar-se escapes à crescente opressão teológica exercida pelo catolicismo contra-reformista.

O mago egípcio

Mantendo-se apenas formalmente como dominicano Bruno viu-se como um mago-hermético, uma espécie de sacerdote de Amon, renascido na Europa do século 16. Observo que este tráfico de Bruno entre a literatura clássica e a literatura hermética, resultou, de certa forma, das suas leituras caóticas e vorazes feitas, ainda jovem, no Mosteiro de San Domenico, quando estudou Pitágoras, Platão, Aristóteles, os interpretes judeus da Bíblia, e inumeráveis tratados de astronomia. Saberes que, depois, se somaram ao conhecimento da obra de Telésio e a de Lulio. Essas leituras, múltiplas e variadas, fizeram com que o seu vocabulário confundisse muitos dos seus exegetas.

Não afetou, porém, o seu magnífico estilo, e, de certo modo, contribuiu para evitar que fizessem dele um dogmático. A abertura dele para tudo o que viesse a somar para o conhecimento, fez com que colocasse, no seu Templo da Sabedoria, além de alguns teólogos não-convencionais, até os povos antigos e místicos diversos, não considerados pelo cristianismo como merecedores de atenção.

Talvez, ele fizesse isso, é de supor-se, na intenção de alargar as sensibilidades do conhecimento e atenuar o preconceito contra o passado pagão da humanidade.

Bruno em Shakespeare Frances Yates, a grande historiadora da ciência, sentiu a imagem espelhada de Bruno em duas figuras de William Shakespeare. Tanto em Berowne, personagem de Love´s labour lost (Trabalhos de Amor Perdido), como na de Próspero, o náufrago da The Tempest (A Tempestade) – o mago bonachão italiano capaz de embasbacar nativos como Caliban, com seus tubos enfumaçados e aparelhos de ensaio(*).

Para escândalo dos teólogos, o filósofo não distingia mágica boa da má. Como uma espada, dizia, as artes do ocultismo eram neutras, podendo fazer-se bom ou mau uso do seu fio, era uma linguagem da natureza e não do demônio.

Tanto Moisés como Jesus eram grandes magos para ele. Bruno, no entanto, ao contrário de Shakespeare, reprovou a conquista da América bem como o comércio de ouro e prata que se seguiu. Não atribuía nenhum direito especial no homem branco que o autorizasse a submeter os nativos.

Sobre a conquista do Novo Mundo opinou que ela só servira “para perturbar a paz do próximo, violar as próprias pátrias das regiões, confundir o que a previdente natureza distinguiu, redobrar os defeitos mediante o comércio e agregar vícios aos vícios de cada povo, mediante a violência impor novas loucuras e demências inéditas aonde não existem, mostrando, enfim, ser mais sábio o que é mais forte: ensinar novos cuidados, instrumentos e artes de tirania e assassinar um ao outro” (Ceia..) Shakespeare, por sua volta, pintou o filósofo na corte de Henrique de Navarra, pondo-lhe na boca um discurso hedonista, sem muito entusiasmo em seguir com rigor a disciplina que o rei, um homem culto e estudioso, desejava impor no seu grupo de estudos ( Ver Cena I, ato I, do Trabalhos de amor perdidos) A infinitude dos mundos A irritação maior dos inquisidores e do papado derivou, porém, da convicção de Bruno de existir, bem além da Terra, uma infinitude de outros mundos e de outras vidas no Cosmos. Citando Epicuro e Lúcrecio, celebrava a possibilidade de haver outros tantos sóis, e outros tantos planetas.

Essa idéia viera-lhe de Nicolau de Cusa, o humanista alemão que, na sua consagrada, mas então pouco divulgada obra De docta ignorancia (A douta ignorância, 1440), antecipou Copérnico. Assegurou ainda haver o movimento da Terra e a sua rotação ao redor do Sol, repudiando a concepção do mundo fechado e finito de Aristóteles, dizendo não haver centro no universo, e que “o seu centro está em toda parte e sua periferia em parte nenhuma”. Essa afirmação, retomada por Bruno, discípulo confesso de Nicolau de Cusa, a quem chamou de “divino”, implicava em duvidar ter Deus feito a Terra à razão de tudo, sendo o Homem o objeto único da Criação. Induzia também, esta teoria dos mundos múltiplos, a que se acreditasse, como no paganismo, na existência de outros deuses, rompendo com o monoteísmo oficial.

O mais vasto império de Deus Para Bruno, ao contrário, quanto mais mundos houvesse, maior ainda seria o império de Deus. Via mesquinhez e mediocridade em acatar-se o princípio que dizia que o universo que nos envolve – comportando miriades de esferas cósmicas, “estes corpos heterogêneos, estes animais, estes grandes globos” -, girava apenas para atender a minúscula Terra (Acerca do infinito, do universo e do mundo, 1584).

Só os matemáticos bisonhos e os filósofos vulgares, disse ele, é que eram dados a construir muralhas imaginarias no céu, fechando-o inutilmente aos espíritos abertos, pois: “Or ecco quello ch´há varcato l´aria, penetrato il cielo, discorse le stelle, trapassati gli margini del mondo, fatte svanir le fantastiche muraglie de le prime, ottave, none, decime, et altre che vi s´avesser potute aggiongere sfere per relazione de vani matematici e cieco veder di filosofi volgari“. (“Ora, aquele que cruzou o espaço, penetrando no céu, descortinando as estrelas, ultrapassando as margens do mundo, faz com que desapareçam as fantasiosas muralhas da primeira, oitava, nona, décima, e tantas outras que os maus matemáticos e o beco sem saída da visão dos filósofos vulgares puderam agregar às esferas”).

O Cosmos heliocêntrico de Copérnico

Anos depois da morte de Bruno, Galileu irá transformar esse paradoxo, isto é o Cosmos inteiro existir apenas em função da terra, numa das suas mais sarcásticas afirmações, quando, num dos seus diálogos, faz Sagredo (o próprio Galileu) dizer a Simplicio (um tolo que defende a ortodoxia e o geocentrismo): “Como assim? Estas afirmando que a natureza concebeu e produziu tantos e tão vastos corpos celestiais, nobres e perfeitos, invariáveis, eternos, divinos, sem nenhum outro propósito que o de servir a esta Terra mutável, transitória e perecível? Servir a isto que chamas os detritos do universo, e esgoto de toda a imundície?” ( Diálogos sobre os dois sistemas do mundo, 1632). Anunciando os astronautas Bruno, como lembrou Maurice de Grandillac, antecipando em quatro séculos a viagem dos astronautas deixou-nos uma bela descrição de um viajante imaginário que, abandonando a Terra em direção às estratosferas, viria o nosso planeta encolhendo: “inicialmente parecendo-se a um astro brilhante, converte-se depois apenas num ponto luminoso perdido num horizonte sem limites”, num universo que não tinha lado, nem fundo; nem alto nem baixo (Sobre lo inmenso, IV, 3).

Bruno foi um dos que abriu ainda que intuitivamente, sem os recursos da matemática e da geometria utilizados por Galileu, as portas da percepção do homem renascentista para que ele vislumbrasse o novo universo que o aguardava (*), interminável, assombroso, com possibilidades infinitas. (*) Foi o silêncio dos espaços infinitos, de onde não se recolhera ainda nenhuma prova de existências extraterrestres, que, mais tarde, levou Pascal à reflexão sobre a terrível situação em que se encontrava a humanidade, para a qual seria psicologicamente insuportável viver sem Deus.

A crença no Ser Supremo era a compensação para a sua solidão absoluta. As esperanças de Bruno Ainda que sabedor da atuação do Santo Oficio (desde 1542, o Papa Paulo III oficializara o funcionamento do nefando tribunal), resta responder porque Giordano Bruno voltou a Itália? É certo que a vida não lhe corria bem. Em Paris, quando retornara da corte de Isabel da Inglaterra, chegou a passar fome e frio. A tentativa de abrigar-se em Praga também fracassou. Em 1590, era um homem maduro, fatigado das incertezas e das andanças que pareciam não ter fim.

Além disso, Yates supõe que, devido a um fator político, Bruno esperava encontrar um ambiente mais liberal e ameno para as suas perigosas especulações e seus exercícios de magia. Na França, entronara-se um novo rei em 1589: Henrique de Navarra. Um homem culto, um renascentista dos pés à cabeça. Ele derrotara a Santa Liga dos católicos, propondo em seguida conciliar as duas religiões rivais (proposta que materializou no Édito de Tolerância de Nanes de 1598). Bruno arriscou.

Talvez a Igreja relevasse os tumultos que ele provocara no passado, inclusive sua estada em Wittemberg, a capital da heresia (onde publicamente elogiou Lutero). Afinal, a expectativa otimista que depositara no “efeito Navarra” de se poder dali em diante “viver e pensar livremente”, não era só dele.

Pagou com a vida pelo engano. Bruno e Campanella É bem possível que outras razões, além da acusação de heresia, pesaram na decisão das autoridades de levá-lo às chamas numa praça pública de Roma. Um pouco antes, em 1599, Tommaso Campanella, um outro frade napolitano, dominicano como Bruno, liderara uma rebelião dos calabreses contra o domínio espanhol em Nápoles. Campanella propunha, em substituição ao governo estrangeiro, a instalação da Cidade Mágica do Sol (que irá inspirar o seu livro La Città del Sole, escrito na prisão em 1602), uma sociedade utópica inspirada na “República” de Platão.

Yates cogita que a execução brutal de Bruno poderia estar de alguma forma relacionada com a insurreição napolitana. Servira de advertência a qualquer tentativa futura de desafio à hierarquia e ao estabelecido. Bruno, é bom lembrar, era também um alvo fácil. Não pertencia a nenhuma corporação acadêmica ou ordem religiosa que intercedesse a seu favor junto à Cúria Romana.

Duas concepções cósmicas rivais Os extremos a que a Inquisição chegou no caso de Bruno prestou-se a demonstrar à intelectualidade, em geral, até que ponto a determinação do Papado chegava. Ele eliminaria até um conhecidíssimo pensador se houvesse um ataque aos dogmas do catolicismo. Ao redor do corpo de Bruno enfrentavam-se duas Weltanchauungs (concepções do mundo) opostas: a Antiga, geocêntrica, herdada da física astronômica helenística, que referendava o Gênese bíblico (a Terra é o centro do universo), e a Moderna, a de Copérnico, heliocêntrica, filha da astronomia universitária moderna (Terra reduzida a um papel insignificante, uma poeira cósmica, perto do astro-rei).

Os cientistas podiam acreditar que o heliocentrismo era a visão verdadeira, mas a Igreja sentiu-o como um rebaixamento: da Terra, do Homem, e dela mesma. A rivalidade entre essas visões cósmicas escondia as crescentes diferenças entre os sacerdotes e os sábios seculares, entre a teologia e a ciência, entre o sagrado e o profano, entre o espiritual e o temporal.

As consequências da morte de Bruno

O suplício de Giordano Bruno em 1600, seguido do julgamento de Galileu em 1616 (mais tarde renovado por um segundo julgamento e pela abjuração de 1633, onde condenaram-no à prisão domiciliar até a sua morte em 1642), provocou, desde então, uma irreparável desconfiança da ciência para com a religião. Para a Itália esta posição da Igreja Católica foi desastrosa.

Os sábios da península, que até então lideravam o movimento científico europeu, ao sentirem-se intimidados pela fogueira da Inquisição, perderam a primazia do conhecimento. Esta se transferiu para os que viviam nos países da Igreja Reformada.

Descartes, por exemplo, o grande filósofo e cientista francês, quando soube da abjuração forçada de Galileu, mudou-se em definitivo de Paris, capital de um país papista, para a Holanda reformada. A obra de Bruno, por sua vez, só foi retirada do Index dos livros proibidos aos católicos em 1948.

Um medo sombrio pairou sobre as ações da Igreja Católica. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios, caso eles questionassem o Alto Clero e a burocracia papal. Imagem negativa que perdurou até recentemente, quando o Papa João Paulo II desculpou-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992.

Porém, até o momento, o Pontificam Consilium Cultura que reabilitou Johann Huss e Galileu, ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.

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