Por Georg Dehn (The Book Of Abramelin – A New Translation)
Tradução e notas: Frater Goya (Anderson Rosa)
Carlos Gilly, decano dos estudos Rosacruzes por mais de uma geração, definiu o Livro de Abramelin em uma única palavra: Pseudo-epígrafo. Isso descartou mais pesquisas sobre o autor autoproclamado, mas abriu uma visão para a origem contemporânea e o impacto dos manuscritos disponíveis – um desafio emocionante para investigar os primeiros Rosacruzes e seus predecessores. O Pansofismo e a Teosofia floresceram no século XVII junto com o Rosacrucianismo e muitas vezes entre os mesmos indivíduos. Os fundadores viveram no século 16: Adam Haslmayr (nascido em 1550), Jacob Böhme (nascido em 1575) e Valentin Weigel (nascido em 1533) são apenas três dos mais famosos. Sem esquecer os neoplatônicos do século XV: Marsilio Ficino (nascido em 1433) e Pico della Mirandola (nascido em 1463). Então é apenas um caminho curto para “Abraham von Worms” AvW (nascido por volta de 1359-62). Tampouco devemos negligenciar Nicolas Flamel, nascido em 1330.
Voltando à sugestão de Gilly, note-se que Johann Valentin Andrea pode ter feito sua “primeira tentativa” com o texto de 1608, antes de se voltar para as Bodas Alquímicas1 e o Fama Fraternitatis2. Um destino semelhante aconteceu com Flamel, que é chamado de Alquimista desde 1612, mas parece não ter praticado alquimia durante sua vida. A história sobre a viagem de Flamel a Abraão, o Judeu, tem uma notável semelhança com o que aconteceu com AvW.
É plausível que as “Revelações Egípcias”, como a obra de Abramelin é subtitulada, tenha sido um trabalho inicial, um projeto privado, sem a intenção de ser impresso. Pode ter permanecido na propriedade de Andrea até os Duques da Saxônia e Braunschweig, e os estudiosos (Comenius, Ashmole, et alia) do Funil de Nuremberg3, Fruchtbringende Gesellschaft4 ou da Royal Society (que teve entre seus fundadores Theodor Haak de Worms5) – todos com conexões com a Maçonaria primitiva – literalmente desenterraram e copiaram. Os textos de Valentin Weigel compartilhavam a mesma sorte. Qualquer pesquisa nesse sentido teria outro aspecto interessante na profecia de AvW, de que a prática permanecesse dentro de sua “seita” – talvez os Rosacruzes no lugar dos judeus – por mais 72 anos, e só então se tornaria pública. Quem estava vivo em 1680 para cumprir essa profecia?
O Livro de Abramelin é uma expressão ideal das ideias Rosacruzes. Mas analisando seu conteúdo – como o caminho da Iniciação, as Irmãs Sábias e Secretas, a relação com Deus, sua visão do ser humano – encontramos ecos de um misticismo judaico e de uma teosofia judaica muito anteriores. Poderíamos traçar a linha de Moisés Maimônides (nascido próximo a 1135) como o primeiro antepassado. O pensamento e a filosofia anteriores não combinam com os de “Abraão”. Seu pensamento, experiência e relação com o meio ambiente são – em seu humanismo, sua antecipação do pensamento renascentista, e mesmo do Iluminismo – modernos demais. AvW foi um homem do segundo milênio em seus melhores aspectos.
Mas há outra forma de abordar o enigma biográfico; talvez o autor fosse um homem real do século XIV/XV, um indivíduo com o currículo único documentado no “Livro de Abramelin”, ocupando um espaço histórico real mas com o seu pseudônimo idealizado.
Como alguém com esses detalhes biográficos poderia ser localizado?
Oswald von Wolkenstein teve uma biografia similar. Outro escritor da corte de Sigismundo, Eberhard von Windecke, também viajava muito e era bastante instruído. Mas “AvW” deve ter sido judeu e tem detalhes biográficos adicionais que não correspondem a nenhum desses outros homens. Outra questão importante é se alguém do século XVII teria acesso às fontes de informação que temos hoje. Cada ponto do Livro Um, capítulo 8, por exemplo, é fácil de provar nos dias de hoje. Mas tal conhecimento seria duvidoso para alguém da época de Johann Yalentin Andrea. Nem ele nem seus contemporâneos poderiam criar tal conjunto de informações para uma biografia ficcional.
Além disso, minha primeira suposição, feita há mais de trinta anos, é que ninguém que viveu antes de 1750 (ou talvez até 1800) poderia saber da vila de Araki6. Foi essa descoberta emocionante que me colocou no caminho de AvW, depois que comecei a entender que algo sério está por trás da Magia Sagrada.
Uma outra questão diz respeito ao sistema de crenças do autor. A estrutura para um contexto judaico é fornecida, mas os textos usados, especialmente no Livro Dois, se estendem a muitas outras fontes não canônicas. Todos eles derivam de uma literatura do Antigo Testamento, e muitos do Cânon Cristão, mas nenhum do Novo Testamento. Este e outros tópicos serão examinados em “A Gnose de Abramelin”.
Abraão de Worms (AvW) viveu durante os mesmos anos que o grande erudito e dirigente das comunidades judaicas alemãs, Jacob HaLevy — chamado de MaHaRIL. Eu o mencionei na introdução. Sua lápide sobrevive no cemitério “Holy Sands” em Worms. É também a sepultura de Abraão?
O cemitério “Holy Sands” é o cemitério judaico mais antigo da Europa, cujos registros remontam ao século X. As sepulturas remanescentes mais antigas datam do século XI. A sepultura do MaHaRil está no “Vale dos Rabinos”, a parte mais antiga do cemitério.
No topo da lápide, arcos de pedras e papéis deixados por aqueles em busca de bênçãos, a realização de um desejo ou apenas um pouco de magia. Embora não seja a sepultura mais antiga do cemitério, é de longe a mais visitada. É única de duas formas. Está em sua própria pequena sepultura tranquila, com as sepulturas ao redor afastadas a pelo menos um metro e meio. E está voltada para Jerusalém, enquanto todas as outras sepulturas do cemitério estão voltadas para a Sinagoga de Worms. Worms era considerada a “Pequena Jerusalém”, o segundo lugar mais sagrado da terra. MaHaRIL pediu ambas as exceções em seu testamento.
A inscrição em seu túmulo diz: “A lua eclipsou quando ele voltou para casa, que pelo cumprimento de sua inspiração era como um fruto precioso”. É difícil traduzir esta afirmação – ocultos dentro de um texto simples, temos significados duplos ou triplos. Encontram-se declarações semelhantes feitas sobre os Boddisatvas na literatura oriental. Há cinco linhas faltando na lápide. As linhas restantes começam com cinco letras que contêm a última parte do nome da esposa do MaHaRIL “Melcha”, que vem da palavra hebraica “Rainha7”. Essa codificação de palavras ocultas é uma técnica cabalística conhecida como Acróstico8, na qual o arranjo das letras iniciais formam mensagens ocultas. Uma codificação semelhante é encontrada nos quadrados com letras encontrados no Livro Quatro.
Finalmente, há aquele “outro” Abraão, aquele mencionado como visitante e participante da Delegação Judaica ao Concílio de Constança, chamado de “Abraham aus Leipzig”. (AaL [ver fig. 3]).
Ele parece ter ocupado o lugar que foi descrito por AvW como seu. O rabino “von Worms” era o mesmo que o empresário “aus Leipzig”? Os Censos de Sigismundo de 1418 e 1426 contam sua própria história. Podem ser documentos referentes a qualquer um dos homens. Seria fascinante saber que nosso honrado Abraham viveu em Leipzig. Mas já é surpreendente saber que a AvW descreveu tantos eventos distantes – eventos com impacto de Sigismundo na Saxônia, a apenas 100 km de Leipzig. Regensburg fica muito mais perto de Leipzig do que de Worms, e também há contatos importantes com os duques da Baviera em Nuremberg, no extremo leste de Worms.
Anos após a descoberta do Registro, surgiram detalhes adicionais. Os arquivos municipais de Leipzig contêm documentos do referido AaL. Os registros indicam que ele emprestou dinheiro para outros empresários, e há até uma queixa ao duque sobre três sacos de prata que deveriam ser devolvidos à AaL. O lembrete indica que o pagamento está atrasado e AaL está considerando exigir juros se o pagamento não for feito em breve.
SINCRONICIDADES ENTRE BIOGRAFIAS
Ao considerar as biografias conhecidas de Abraham von Worms (ou aus Leipzig) e Rabi Jacob (o MaHaRIL), deve-se ter em mente o seguinte:
1. Tentativas podem ter sido feitas pelos transcritores do MaHaRIL para distanciá-lo dos escritos de AvW/AaL, permitindo que evidências confusas permanecessem não esclarecidas. Por exemplo, parece haver um conflito sobre o(s) local(is) de nascimento – seja em Worms ou Mainz. Isso pode, em parte, ser explicado pelo fato de que o distrito de Worms incluía Mainz.
2. O número de judeus em toda a Alemanha após a Peste Negra e os pogroms10 subsequentes reduziu para alguns milhares, talvez 5% da população original. Os judeus do distrito de Worms devem ter chegado, no máximo, às centenas. As tradições corriam o risco de se perder. Pode ter sido por isso que tanto as receitas do Livro Dois quanto as tradições do “Sefer MaHaRIL” (publicado pela primeira vez como “Minhagim”, Sabionetta 1556) foram coletadas.
3. A partir de evidências internas, parece que os Livros Um, Três e Quatro foram escritos para o filho de Abraão, Lameque. O Livro Dois, os remédios cabalísticos, é um acréscimo. Quem foi Lameque? Diz-se que seu irmão primogênito foi concebido no 11º mês da iniciação de Abraão, portanto, Lameque deve ter nascido depois de 1410. Desde os primeiros capítulos do Livro Três, parece que Abraão conhece o horóscopo de seu filho, mas não sua situação atual na vida.
Datas | Abraão | MaHaRIL |
1350 | Período provável de nascimento. | |
1359 | Data de nascimento construída a partir de evidências no Livro Um, Capítulos Dois e Três. | |
1379, 24 de dezembro | Morte de Simon, pai biológico de Abraão – da declaração no Livro Um, Capítulo Três. | |
1387, 27 de abril | Data do falecimento de Moses, professor do MaHaRIL. | |
1387 | Fim dos estudos no Maiz. | Fim dos estudos em Mainz e iniciação como rabino. |
1387, 10 de maio | Começo da viagem. Estes duraram 17 anos e cobriram o Mediterrâneo, a partir de evidências apresentadas em todo o Livro Um. | Não há registros históricos para este período. |
1387 | Abraão arranja casamento para o Imperador Segismundo, Livro Um, Capítulo Oito. | A profissão de MaHaRIL era de “casamenteiro”. |
1394 | Longa estadia em Constantinopla, doença pesada, Livro Um, Capítulo Quatro. | Derrame, dos registros da Biblioteca Judaica de Berlim. |
1400 | A documentação reaparece. Evidências de cartas de que foram feitas visitas a Viena, Veneza, parte superior da Itália. | |
1404 | Retorno via Veneza, parte superior da Itália e vale do Reno. | |
1417 | Viaja para Konstance como membro da Delegação Judaica ao Concílio com os Papas Martinho V e João 23. Provas dos amplos registros da Congregação de 1417. | |
1422 | Papa Martinho V, emite uma bula papal, concedendo proteção ao povo judeu. | |
1423 | A carta de Abraão ao imperador bizantino João II, segundo o Livro Um, cap.8 i., na qual ele profetiza a ruína do Império e sua própria morte em pouco tempo. | |
1425/6 | Abraão ajuda Segismundo em uma batalha. | Abraão “O Judeu” de Leipzig é mencionado no registro por ajudar Segismundo na guerra. |
Final da década de 1420 | Os registros cessam. | A história judaica nos informa que o MaHaRIL retornou a Worms. |
1427 | Data da morte incerta, pode ser na década de 1430. | Morte, conforme registrado na lápide. |
1458 | Data anotada no manuscrito, “Livro de Abramelin”. | Primeira compilação do Minhagim por Salman de St. Goarshausen. |
FUNDOS DE VIAGEM
Abraham nos diz no Livro Um que viajou pelo mundo mediterrâneo por 17 anos. Em nenhum momento há menção a uma ocupação remunerada. Pelo contrário, ele nos conta que esteve doente por um ano e deu florins de ouro a Abramelin para passar como dinheiro de esmola aos pobres de Araki. Como Abraão financiou suas viagens? Ele levou uma bolsa de dinheiro junto? Se ele tinha esses fundos com ele, como ele conseguiu sobreviver sem ser roubado?
Dada essa dificuldade, pode-se conjeturar que Abraão só viajou em sua imaginação. Mas não, existe uma solução historicamente legítima. Judeus medievais, como os primeiros Cavaleiros Templários das Cruzadas, tinham uma infraestrutura para obter fundos em todo o mundo conhecido.
Isso é bem descrito por Noah Gordon em seu romance histórico The Physician (Simon & Schuster, 1986). Surgiu do fato de que os judeus eram um grupo social que tinha ideais rígidos e religiosamente reforçados sobre a importância da identidade dentro do grupo. Sinais, gestos (toques) e palavras – bem como os maçons de hoje – foram usados para garantir a identidade religiosa. Para alguns, esses ideais foram reforçados pelo medo de que uma transgressão prejudicasse seus filhos, e os filhos de seus filhos até a “centésima geração”.
O sistema funcionava em notas escritas informando sobre obrigações financeiras – cheques, se preferir. Estes não podiam ser roubados porque vinham com cessionários ou conhecimentos pessoais que identificavam tanto o portador da nota quanto a veracidade da obrigação.
Esse sistema também permitia a negociação. Possibilitava os pagamentos sem a necessidade direta de trocar mercadorias por uma viagem de volta. O dinheiro era apenas uma parte do acordo contratual.
Abraham, se ele foi, de fato, o MaHaRIL, era tanto um rabino quanto um Ehevermittler (um casamenteiro). Ele certamente estaria acostumado a operar dentro desse sistema medieval contratual de obrigações familiares.
1Bodas Alquímicas de Christian Rozenkreuz (título original: Die Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz. Anno 1459) – Livro por Johannes Valentinus Andreae, 1616, Estrasburgo. O enredo se desenvolve no ano de 1459, na noite anterior à Páscoa. – NT.
2Fama Fraternitatis Rosae Crucis (Fama fraternitatis Roseae Crucis oder Die Bruderschaft des Ordens der Rosenkreuzer), ou simplesmente Fama Fraternitatis, é um manifesto rosacruz, por Johannes Valentinus Andreae, 1614, Kassel. – NT.
3O Funil de Nuremberg é uma descrição jocosa de uma maneira mecânica de aprender e ensinar. Ensino sem esforço, ou mesmo algo do gênero “Física Quântica for Dummies (para idiotas, de forma pejorativa)”, ou ainda, algo como “enfiar o conhecimento na cabeça de alguém de maneira forçada”. – NT.
4A Sociedade Frutífera (em alemão, Die Fruchtbringende Gesellschaft, lat. societas fructifera) foi uma sociedade literária alemã fundada em 1617 em Weimar por intelectuais e nobres alemães. Também conhecida como Palmenorden (“Ordem da Palmeira”) uma vez que o seu emblema era uma palmeira de coqueiro. – NT.
5Theodor Haak (1605-Worms a 1690-Londres), foi um estudioso calvinista alemão, residente na Inglaterra no final da vida. Fez parte do Grupo de 1645. Este “Grupo de 1645”, ou como ficou mais tarde e enganosamente conhecido – o ‘Invisible College‘ – é considerado por alguns um antecessor da Royal Society. Invisible College é o termo utilizado para uma comunidade restrita de acadêmicos que muitas vezes se encontravam pessoalmente, trocavam ideias e estimulavam-se mutuamente. O conceito de “colégio invisível” é mencionado nos panfletos Rosacruzes alemães no início do século XVII. – NT.
6Araki – yqra – NT.
7מלכה – Malka. – NT.
8Ou Notariqon (Hebraico: נוטריקון Noṭriqōn. – NT.
9Banho de imersão, מִקְוָה – Mikvah, é a imersão ritual em água utilizada no judaísmo. Geralmente é utilizado para purificação da mulher após a menstruação e o nascimento de um filho, e também é requerido aos que se convertem ao judaísmo. A imersão no mikvé é também praticada pelos homens antes do Yom Kippur e, em algumas comunidades, assume-se como um ritual semanal antes do Shabbat. – NT.
10Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto no império russo como em outros países. – NT.