O Contexto Histórico para o Surgimento da Literatura de Palácios

Por Frater Melquisedeque

Matthäus Merian‘s engraving of Ezekiel‘s vision (1670)

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25/06/22 – Sábado 9:26am 

Sol em Câncer 03º, Lua em Touro 24º – Minguante 

Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei! 

O Contexto Histórico para o Surgimento da Literatura de Palácios 

“Essas falsas implicações também permitem o reconhecimento de cadeias causais simples, por oposição a redes complexas. Para Foucault, o enunciado ‘A causou B no intervalo de tempo t1 – t2’ é, no melhor dos casos, um enunciado incompleto. Ao invés disso, deveríamos ter descrições de genealogias junto com a interpretação arqueológica dos monumentos: O movimento A pode ser interpretado como parte destas séries emergentes ao longo do tempo, legando esses limites e aberturas no presente.” WILLIAMS 2013, p 165 

O Judaísmo é um sistema complexo de crenças que não deve jamais ser entendido como um bloco único e uniforme de preceitos, mas precisa ser analisado como um sistema dinâmico, que vai se transmutando ao longo do tempo e das condições sociais em que se manifesta. Essas modificações alteram substancialmente as práticas espirituais desse construto religioso, e vão ter impacto não só para os próprios judeus, mas para os cristãos e até mesmo para os adeptos das tradições esotéricas ocidentais. 

Esse texto pretende tratar especificamente da emergência da Literatura de Palácios, explicitando o contexto histórico que propiciou seu surgimento. Essa literatura é extremamente influente sobre o modo em que tradição esotérica ocidental se desenvolverá, e não é possível pensar na obra de John Dee ou no Livro de Abramelin, por exemplo, sem que se percebam os ecos da Literatura de Palácios. 

JUDAÍSMOS 

Pensar na trajetória que leva à Literatura de Palácios é refletir sobre o trajeto teológico do judaísmo ao longo do período que perpassa a formação dos reinos de Judá e Israel (século X AEC), com o culto tribal e familiar, a construção do primeiro templo, as reformas de Ezequias (século VIII AEC) e Josias (século VI AEC), o exílio na Babilônia (586 AEC), retorno à terra e a construção do segundo templo (516 AEC) com sua posterior destruição do pelos romanos (70 EC). É falar também sobre a diáspora e seu efeito sobre a espiritualidade e identidade de um povo – e sobre o modo que a dispersão dos judeus modulou o entendimento do sentido dos escritos que esses receberam de seus antepassados. Estamos falando da influência cultural de vários povos sobre a sociedade que produziu a Torah, ao longo de muitíssimos séculos: egípcios, caananitas, neo-assírios, neo-babilônios, gregos, etc.  

Ao longo desse tempo, a prática religiosa e espiritual dos judeus (antes apenas hebreus, e depois israelitas ou judaítas) foi se amalgamando a partir de um politeísmo (crença em vários deuses) sincrético que espelhava desde suas origens o panteão ugarítico (MOURA 2016, CARDOSO 2020), para uma monolatria (há vários deuses, mas só há o culto a um) (WHEELER, SITALI 2014), para finalmente o estabelecimento de um monoteísmo, já tardiamente e posterior ao retorno do cativeiro da Babilônia (SITALI 2014), como uma reação ao contato com o Zoroastrismo (APINIS 2010). 

Como resultado disso, a relação do povo com o(s) seu(s) deus(es) foi ficando cada vez mais restrita e regulada por uma institucionalidade. De um culto familiar para templos regionais – posteriormente destruídos por Senacherib ou por Josias, até se estabelecer praticamente uma exclusividade do culto focado no templo de Jerusalém – apesar de haver a todo tempo correntes dissonantes. 

FARISEUS  

Com fortíssima influência do Zoroastrismo, estabeleceu-se a corrente dos Fariseus, que acabou se tornando hegemônica politicamente e que veio a dar origem ao que entendemos como judaísmo rabínico hoje em dia.  

Contudo, apenas uma elite econômica, social e intelectual foi exilada na Babilônia por Nabucodonosor. O restante da população do povo da terra (naquele momento apenas o reino de Judá) manteve as práticas de sua tradição. Estabeleceu-se assim, uma tensão entre uma corrente religiosa mais elitizada e a prática religiosa mais popular. 

“Não apenas a separação social foi sendo depurada com a deportação, mas agora um novo tipo de separação começou a ser estabelecida: a separação étnica. Os deportados haviam ficado bastante tempo no convívio com outras nações. Concepções sobre pureza ritual começaram a ficar cada vez mais refinadas na mente deste grupo.” (MARIANNO 2007 p. 65) 

A influência do Zoroastrismo também passa a ser crucial teologicamente, modificando o entendimento do pós-morte, com a gradual incorporação de entidades que viriam a ser estabelecidas na metafísica da cultura judaica como anjos e demônios. Esse seria o judaísmo apocalíptico que aparece na boca de Jesus nos evangelhos; Jesus era judeu, e seu judaísmo aderia à luta do bem contra o mal em uma guerra, e a vitória do bem no fim dos tempos. Somente muito mais tarde é que o cristianismo deixa de ser entendido como uma seita do judaísmo e passa a ser uma religião separada. A transformação do Sheol (mundo dos mortos) judaico e a evolução do entendimento de Satan na cultura judaica, assim como a ideia de um julgamento pós-morte individual e uma ressureição dos mortos, são todos conceitos oriundos do Zoroastrismo. 

CONSOLIDAÇÃO DA IMPORTÂNCIA DO TEMPLO 

De qualquer modo, o texto bíblico traz diversas camadas que apontam para tais mudanças conceituais e para tensões entre diferentes ideologias. A noção de que o nome de Deus não deve ser utilizado a não ser para o culto no templo tem como consequência objetiva uma impossibilidade da manutenção do culto familiar. Apesar de considerar-se que há exageros no texto bíblico (MOURA 2014), II Reis 23, 1-20 reflete uma base histórica para a centralização do culto a Javé e a eliminação dos outros deuses e de outros locais de culto. A criação do conceito de pureza (MARIANNO 2007) também direciona o culto para o templo em Jerusalém. É pelo sacrifício do templo que o pecado é expiado e a pureza, re-estabelecida. 

Assim, houve cada vez mais concentração do poder hegemônico no templo de Jerusalém, e sua destruição pelos romanos em 70 CE apresenta um problema teológico bastante difícil: se o templo é a única ponte de comunicação com o Divino, como é possível acessá-lo quando o templo deixa de existir? 

CONTRUINDO NOVAS PONTES 

Buscando responder a essa lacuna deixada na práxis espiritual e ritualística, a consolidação das sinagogas e yeshivot (escolas de formação do rabinato), começa a fortalecer duas práticas de naturezas opostas e complementares. 

De um lado, o judaísmo rabínico acaba focando em um primeiro momento, durante o período Tanaíta (ano 30 EC a 200 EC), nas questões que dizem respeito ao dia-a-dia e às questões pragmáticas do judaísmo. É apenas posteriormente que a literatura rabínica vai se debruçar mais detidamente sobre questões mais metafísicas, já no período Amoraíta (ano 200 EC a 500 EC).  

De outro lado, resgatando especialmente a visão de Ezequiel – que remonta ainda ao período da conquista de Jerusalém pelo império Neo-babilônico (587 BCE), a lógica de um segundo grupo de pessoas foi a de tentar criar um veículo espiritual (carruagem) que pudesse levar os buscadores até os Palácios Celestiais. Nesse sentido, buscava-se uma abordagem de baixo para cima; já que não havia mais a casa da Divindade na terra, entendeu-se a necessidade de ir diretamente aos Palácios Divinos para encontrar o contato com a Divindade. 

Ainda que essa abordagem estivesse menos ligada com o pensamento rabínico, especula-se que houve alguma participação da elite das escolas de formação para a elaboração da literatura, pois há evidências de erudição na estilística e no domínio das escrituras. Naiweld 2012 aponta para esse fato e apresenta a hipótese de que tal literatura é fruto dos escribas – que participavam da elite intelectual, mas não possuíam o mesmo status dos rabinos, em uma tentativa de oferecer recursos pedagógicos ao povo mais simples, e que posteriormente acabou ganhando uma leitura menos alegórica e mais teológica. 

DA DISSIDÊNCIA AO ANÁTEMA 

A Literatura de Palácios apresenta diversos conceitos que expandem e enriquecem o entendimento do mundo espiritual, como por exemplo os diferentes níveis do mundo espiritual e seus respectivos anjos. Curioso novamente apontar que encontramos ecos dessa ideologia no cristianismo primitivo, como por exemplo em Paulo.  

“Toda essa longa digressão a respeito da mística judaica é importante para indicar um dos contextos no qual se deram as experiências extáticas do protocristianismo. Esse fenômeno místico e visionário mais ligado ao judaísmo foi assimilado e reelaborado pelas comunidades protocristãs.” (CARNEIRO 2021 p. 11) 

Dessa forma, há diversos momentos em que a literatura explica ou complexifica pontos de doutrina que já eram existentes. Entretanto, em outros, há uma cisão tão brutal com a ortodoxia que já estava se consolidando, em que os relatos acabam entrando em conflito com o texto canônico.  

Um desses casos é a ideia apresentada no Shi’ur Qomah, em que temos descrições da figura de Deus, descrevendo o comprimento das partes do corpo divino. Diversas passagens da escritura advertem para que não seja feita imagem do Criador, como em Isaías 40:25. “”Com quem vocês vão me comparar? Quem se assemelha a mim?”, pergunta o Santo. Dessa forma, a visão que se estabelece como dominante no judaísmo – de que o Criador estaria além de qualquer representação – é violada no Shi’ur Qomah. 

Outro ponto curioso é a saga de transformação tanto de Enoque quanto de Elias em anjos, e a possibilidade de isso ser realizável ao também ao justo. Essa corrente de pensamento acabou por postular a existência de uma entidade menor, chamada no Sepher Hekhalot (Enoque 3) de YHVH ha-qatan, ou Pequeno Javé, que seria uma espécie de regente da criação sob os auspícios do YHVH ha-gadol, ou Grande Javé: inferior, mas ainda com características celestiais. Talvez essa tenha sido a inspiração para o estabelecimento do dogma cristão da divindade de Jesus, estabelecido pelos patriarcas da igreja, como Ignácio de Antioquia. Vale observar que, se esse for o caso, a Literatura de Palácios precisa estar estabelecida, ao menos oralmente, no primeiro século da Era Cristã (Era Comum), visto que Ignácio é morre no início do segundo século.  

De qualquer maneira, esse tipo de especulação sobre um regente divino menor para a criação entra em conflito com a ideia monoteísta do judaísmo pós-exílico na forma em que chega até nossos dias na oração do Shemah (Deuteronômio 6:4-9). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O objetivo deste texto é apresentar o contexto histórico para o surgimento da Literatura de Palácios, mostrando a importância crucial da destruição do Segundo Templo para a consolidação do judaísmo rabínico e para a busca por formas de conexão com o Divino mediante a impossibilidade do método até então utilizado (por via do templo). 

Além de Dee e do Abramelin, é infindável o número de trabalhos que devem sua fundamentação direta ou indiretamente à especulação sobre o mundo superior e os anjos conforme explorado na Literatura de Palácios, tais como o Ars Paulina e o Ars Notória ou os trabalhos de Agrippa e até mesmo Ficino! É importante notar que antes da Literatura de Palácios, houve outros escritos que elaboraram a temática, como os encontrados entre os Manuscritos do Mar Morto, mas o impacto dos relatos da jornada pelos palácios divinos é algo que permanecerá solidamente na mística judaica até os nossos dias. 

Dessa maneira, conhecer a Literatura de Palácios, mais do que apenas um estudo da História das Ideias que resultaram no Judaísmo, Cristianismo e Ocultismo contemporâneos, é um exercício da Arqueologia do Saber foucaultiana que aponta para as descontinuidades do conhecimento e para o desafio que se levanta para que o buscador entenda a parcialidade de tudo que julga saber. É um convite à humildade intelectual de perceber modos distintos de encarar a complexidade do fenômeno da espiritualidade humana, e tentar desnudar os fundamentos das práticas que utilizamos. 

REFERÊNCIAS 

APINIS, V. (2010). Zoroastrian Influence upon Jewish Afterlife: Hell punishments in Arda Wiraz and Medieval Visionary Midrashim. Recuperado de https://core.ac.uk/download/pdf/71753711.pdf 

CARDOSO, S. K. (2020). The Goddesses and Gods of Saul. Revista Pistis Praxis, 12(2). Recuperado de https://periodicos.pucpr.br/pistispraxis/article/view/26931 

CARNEIRO, M. S. (2021). Magia, Experiências Extáticas e a Dimensão Popular do Protocristianismo. Revista Caminhando v. 26. Recuperado de https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/Caminhando/issue/view/576 

LEITH, J. W. (2020). New Perspectives on the Return from Exile and Persian-Period Yehud. In: The Oxford Handbook of the Historical Books of the Hebrew Bible. Edited by Brad E. Kelle and Brent A. Strawn. Recuperado de https://www.academia.edu/44472311/New_Perspectives_on_the_Return_from_Exile_and_Per_sian_Period_Yehud 

MARIANNO, L. D. (2007) A Ameaça que vem de dentro: um estudo sobre as relações entre judaítas e estrangeiros no pós-exílio em perspectiva de gênero. 2007. 183 f. Dissertação Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Recuperado de http://tede.metodista.br/jspui/handle/tede/424 

MOURA, R. L. (2014). Levitas e sacerdotes: conflitos e busca do controle no templo na cidade de Jerusalém nos séculos VII/V AEC. Revista Nures. Ano X, n. 28. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/nures/article/view/27432 

MOURA, R. L. (2016). A Cidade de Ugarit. Contribuições para o Estudo da Religião do Antigo Israel. Revista Nures. Ano XII, n. 32. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index.php/nures/article/view/28747 

Naiweld, Ron – Le Mythe à L’usage de la Rabbinisation: La tradition de Sar ha-Torah dans son contexte historique et social. Recuperado de https://www.academia.edu/2626889/LE_MYTHE_%C3%80_L_USAGE_DE_LA_RABBINISATION_La_tradition_de_Sar_ha_Torah_dans_son_contexte_historique_et_social 

NOGUEIRA, S. M. S. (2011). Viagens Celestiais da Apocalíptica à Literatura de Hekhalot. Revista Oracula. v.7 n. 12. Recuperado de https://docplayer.com.br/23425761-Viagens-celestiais-da-apocaliptica-a-literatura-hekhalot-sebastiana-maria-silva-nogueira.html 

SITALY, A. S. (2014). Jewish Monotheism: the Exclusivity of Yahweh in Persian Period Yehud (539-333 BCE). Recuperado de https://www.twu.ca/sites/default/files/266698_pdf_257524_eafddefa-af12-11e3-a68d-7f522e1ba5b1_sitali_a.pdf 

WHEELER, S. Origins of Israelite Monolatry. Recuperado de https://www.academia.edu/14498153/Origins_of_Israelite_Monolatry 

WILLIAMS, J. Pós-estruturalismo. 2013. Petrópolis, RJ: Vozes. ISBN 978-85-326-4409-1 

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