Por René Guénon
Tradução e notas: Fr. Goya (Anderson Rosa)
Uma vez que fomos conduzidos a falar dos Rosacruzes, não será talvez inútil, ainda que este tema se refira a um caso mais particular que a iniciação em geral, agregar a isso algumas correções, já que em nossos dias, este nome de Rosacruz se emprega de uma maneira vaga e freqüentemente abusiva, e se aplica indistintamente a personagens diferentes, entre os quais sem dúvida, muito poucos teriam realmente direito a ele. Para evitar todas essas confusões, parece que o melhor seria estabelecer uma distinção clara entre Rosacruz e Rosacrucianos, de onde este último termo pode receber sem inconveniente uma extensão mais ampla que o primeiro; e é provável que a maioria dos pretensos Rosacruzes, designados comumente como tais, não foram verdadeiramente mais que Rosacrucianos.
ROSACRUZES E ROSACRUCIANOS
Por René Guénon
Tradução e notas: Fr. Goya (Anderson Rosa)
Uma vez que fomos conduzidos a falar dos Rosacruzes, não será talvez inútil, ainda que este tema se refira a um caso mais particular que a iniciação em geral, agregar a isso algumas correções, já que em nossos dias, este nome de Rosacruz se emprega de uma maneira vaga e freqüentemente abusiva, e se aplica indistintamente a personagens diferentes, entre os quais sem dúvida, muito poucos teriam realmente direito a ele. Para evitar todas essas confusões, parece que o melhor seria estabelecer uma distinção clara entre Rosacruz e Rosacrucianos, de onde este último termo pode receber sem inconveniente uma extensão mais ampla que o primeiro; e é provável que a maioria dos pretensos Rosacruzes, designados comumente como tais, não foram verdadeiramente mais que Rosacrucianos.
Para compreender a utilidade e a importância desta distinção, é mister primeiramente recordar que, como já dissemos em algum momento, os verdadeiros Rosacruzes nunca constituíram uma organização com formas exteriores definidas, e que, a partir do início do século XVII pelo menos, houve não obstante numerosas associações que se podem qualificar de rosacrucianas, o que não quer dizer de modo algum que seus membros foram Rosacruzes; pode-se inclusive estar seguro de que não eram, e isso unicamente pelo fato de que formavam parte de tais associações, o que pode parecer paradoxal e inclusive contraditório à primeira vista, mas que é sem dúvida facilmente compreensível depois das considerações que expusemos anteriormente.
A distinção que indicamos está longe de reduzir-se a uma simples questão de terminologia, e se vincula na realidade a algo que é de ordem muito mais profunda, posto que o termo Rosacruz, como explicamos, é propriamente uma a designação de um grau iniciático efetivo, quer dizer, de um certo estado espiritual, cuja posse, evidentemente, não está ligada necessariamente ao fato de pertencer a uma certa organização definida. O que representa, é o que se pode chamar à perfeição do estado humano, já que o símbolo mesmo da Rosacruz, pelos dois elementos dos quais é composto, figura a reintegração do ser no centro deste estado e a plena expansão de suas possibilidades individuais a partir desse centro; por conseguinte, marca muito precisamente a restauração do “estado primordial”, ou, o que equivale ao mesmo, o término da iniciação aos “mistérios menores”.
Por outro lado, desde o ponto de vista que se pode chamar “histórico”, é mister ter em conta o fato de que esta designação de Rosacruz, ligada expressamente ao uso de um certo simbolismo, não foi empregada mais que em algumas determinadas circunstâncias determinadas de tempo e lugar, fora das quais seria ilegítimo aplicá-la; poderia se dizer que aqueles que possuíam o grau de que se trata, apareceram como Rosacruz nessas circunstâncias, unicamente e por razões contingentes, como, em outras circunstâncias, puderam aparecer sob outros nomes e sob outros aspectos.
Isso, bem entendido, não quer dizer que o símbolo mesmo a que se refere este nome não possa ser muito mais antigo que o emprego que se fez dele, e inclusive, como é para todo símbolo tradicional, seria sem dúvida completamente vão buscar-lhe uma origem definida. O que queremos dizer, é somente que o nome retirado do símbolo não foi aplicado a um grau iniciático a não ser a partir do séc. XIV, e, ademais, unicamente no mundo ocidental; assim pois, não se aplica mais que em relação a uma certa forma tradicional, que é a do esoterismo cristão, ou, mais precisamente , a do hermetismo cristão; voltaremos mais adiante sobre o que é mister entender exatamente pelo termo “hermetismo”.
O que acabamos de dizer é indicado pela “lenda” de Christian Rosenkreutz, cujo nome é por demais simbólico, e no que é muito duvidoso que seja necessário ver um personagem histórico, mesmo que alguns tenham dito que ele, senão que parece mais uma como uma representação do que se pode chamar de uma “entidade coletiva”. O sentido geral da “lenda” deste suposto fundador, e em particular as viagens que lhe são atribuídas, parece ser que, depois da destruição da Ordem do Templo, os iniciados ao esoterismo cristão se reorganizaram, de acordo com os iniciados ao esoterismo islâmico, para manter, na medida do possível, o laço que havia sido aparentemente rompido por essa destruição; mas esta reorganização fez-se de uma maneira mais oculta, invisível em certo modo, e sem tomar seu apoio em uma instituição conhecida exteriormente e que, como tal, haveria podido ser destruída uma vez mais.
Os verdadeiros Rosacruzes foram propriamente os inspiradores desta reorganização, ou, como queira, foram os possuidores do grau iniciático do que temos falado, considerados especialmente entanto que desempenharam este papel, que se continuou até o momento onde, a conseqüência de outros acontecimentos históricos, o laço tradicional do que se trata foi definitivamente rompido para o mundo ocidental, o que se produziu no curso do séc. XVII.
Diz-se que os Rosacruz se retiraram então ao oriente, o que significa que, adiante, já não houve no ocidente nenhuma iniciação que permita alcançar efetivamente este grau, e também que a ação que se exerceu por seu meio para a manutenção do ensinamento tradicional correspondente deixou de manifestar-se, ao menos de uma maneira regular e normal.
Quanto a saber quais foram os verdadeiros Rosacruzes, e saber com certeza se tal ou qual personagem foi um deles, isso parece completamente impossível, e por conseguinte puramente interior, do que seria muito imprudente querer julgar segundo quaisquer sinais exteriores.
Ademais, em razão da natureza de seu papel, estes Rosacruzes, como tais, não puderam deixar nenhum rastro visível na história profana, de sorte que, inclusive caso fosse possível conhecer seus nomes, sem dúvida não ensinariam nada a ninguém. Ademais, a esse respeito, remetemos ao que já dissemos das mudanças de nomes, e que explica suficientemente o que a coisa pode ser na realidade. No que se refere aos personagens cujos nomes são conhecidos, concretamente como autores de tais e quais escritos, e que se designam comumente como Rosacruz, o mais provável é que, em muitos casos, foram influenciados ou inspirados mais ou menos diretamente pelos Rosacruzes, aos quais serviram de certo modo como porta-voz, o que expressaremos dizendo que foram somente Rosacrucianos, seja que tenham pertencido ou não a algum dos grupos aos quais pode-se dar a mesma denominação.
Pelo contrário, se encontrou excepcionalmente e como por acidente que um verdadeiro Rosacruz tenha jogado um papel nos acontecimentos exteriores, isso seria em certo modo, apesar de sua qualidade melhor que a causa dela, e então os historiadores podem estar muito longe de suspeitar essa qualidade, a tal ponto que as duas coisas pertencem a domínios diferentes. Tudo isso, certamente, é pouco satisfatório para os curiosos, mas devem tomar seu partido; muitas coisas escapam assim aos meios de investigação da história profana, que forçosamente, por sua própria natureza, não permitem apreender nada mais que o que se pode chamar de “exterior” dos acontecimentos.
É necessário todavia agregar outra razão pela qual os verdadeiros Rosacruz devem permanecer sempre desconhecidos: é que nenhum deles nunca pode afirmar tal, como tampouco, na iniciação islâmica, nenhum (ûfî) autêntico pode prevalecer-se deste título. Nisso há inclusive uma semelhança que é interessante destacar, ainda que, para dizer a verdade, não haja equivalência entre as duas denominações, já que o que é implicado no nome de (ûfî) é na realidade de uma ordem mais elevada que o que implica o de Rosacruz e se refere a possibilidades que superam as do estado humano, considerado inclusive em sua perfeição; a rigor, deveria reservar-se exclusivamente ao ser que atingiu a realização da “Identidade Suprema”, quer dizer, a meta última de toda a iniciação; mas não deve-se dizer que tal ser possui a fortiori o grau que faz o Rosacruz e pode, se há lugar nele, desempenhar as funções correspondentes.
Ademais, se faz comumente do nome de (ûfî) o mesmo abuso que do nome Rosacruz, até aplicar-lhe às vezes aos que estão somente na via que conduz a iniciação efetiva, sem haver alcançado todavia nem sequer os primeiros graus desta; e, a esse propósito, pode-se notar que, não menos corrente, se dá uma extensão ilegítima parecida à palavra Yogî no que concerne à tradução hindú, de sorte que esta palavra, a meta suprema e que é assim o equivalente exato de (ûfî), chega a ser aplicada ali a aqueles que não estão todavia mais que em suas etapas preliminares e inclusive em sua preparação mais exterior.
Assim pois, não somente em semelhante caso, senão inclusive para ele que chegou aos graus mais elevados, sem haver chegado não obstante ao termo final, a designação que convém propriamente é a de mutaçawwuf; e, como o (ûfî), mesmo não está marcada por nenhuma distinção exterior, esta mesma designação será também a única que poderá tomar ou aceitar, não em virtude de considerações puramente humanas como a prudência ou a humildade, senão porque seu estado espiritual constitui verdadeiramente um segredo incomunicável.
É uma distinção análoga a essa, em uma ordem mais restrita (posto que não ultrapassa os limites do estado humano), a que se pode expressar pelos termos de Rosacruz e Rosacrucianismo, distinção na que esse último pode designar a todo aspirante ao estado de Rosacruz, a qualquer grau que tenha atingido efetivamente, e inclusive se todavia não recebeu mais que uma iniciação simplesmente virtual na forma a que esta designação convém propriamente de fato. Por outro lado, do que acabamos de dizer pode-se retirar um tipo de critério negativo, no sentido de que, se alguém se declarou Rosacruz ou (ûfî), pode-se afirmar desde então, sem ter a necessidade de examinar as coisas mais a fundo, que não o era certamente na realidade.
Outro critério negativo resulta do fato de que os Rosacruz nunca se ligaram a nenhuma organização exterior, pode-se afirmar também que, ao menos fez parte dela ativamente, não foi um verdadeiro Rosacruz. Ademais, deve-se destacar que as organizações deste gênero não levaram o título de Rosacruz senão muito tardiamente, posto que não as vemos surgir assim, como dizíamos mais atrás, além do começo do séc. XVII, quer dizer, pouco antes do momento em que os verdadeiros Rosacruzes se retiraram do ocidente; e é inclusive visível, por muitos indícios, que as organizações que se fizeram conhecer então sob este título estavam já mais ou menos desviadas, ou em todo caso, muito afastadas da fonte original. Com maior razão a coisa foi assim para as organizações que se constituíram mais tarde todavia sob o mesmo vocábulo, e cuja maior parte não puderam reclamar sem dúvida, a respeito dos Rosacruz, nenhuma filiação autêntica e regular, por indireta que fosse, e não falamos aqui, entenda-se bem, das múltiplas formações pseudo-iniciáticas contemporâneas que não tem de rosacrucianismo nada além do nome usurpado, que não possuem nenhum rastro de uma doutrina tradicional qualquer, e que adotaram simplesmente, por uma iniciativa completamente individual de seus fundadores, um símbolo que cada um interpreta segundo sua própria fantasia, à falta do conhecimento de seu sentido verdadeiro, que escapa tão completamente a esses pretensos Rosacrucianos como ao primeiro profano que chega.
Há todavia um ponto sobre o qual devemos voltar com mais precisão: dissemos que deve ter havido, na origem do Rosacrucianismo, uma colaboração entre iniciados aos dois esoterismos cristão e islâmico; esta colaboração deve ter se continuado também depois, posto que se tratava precisamente de manter o laço entre as iniciações do oriente e ocidente. Iremos inclusive mais longe: os mesmos personagens, tenham vindo do cristianismo ou do islamismo, puderam, se viveram no oriente e no ocidente (e, à parte de todo o simbolismo, as alusões constantes a suas viagens fazem pensar que este deve ter sido o caso de muitos entre eles), a ser às vezes Rosacruz e (ûfîs ou mutaçawwufin dos graus superiores), posto que o estado espiritual que alcançaram implicava em estarem além das diferenças que existem entre as formas exteriores, e que não afetam em nada a unidade essencial e fundamental da doutrina tradicional.
Bem entendido, por isso não menos conveniente manter, entre Taçawwuf e Rosacrucianismo, a distinção que é a das formas diferentes do ensinamento tradicional; e os Rosacrucianos, discípulos mais ou menos diretos dos Rosacruzes, são unicamente aqueles que seguem a via especial do hermetismo Cristão; mas não pode haver nenhuma organização iniciática plenamente digna deste nome e que possua a consciência efetiva de sua meta, que não tenha acima de sua hierarquia, seres que tenham ultrapassado a diversidade das aparências formais. Esses poderiam, segundo as circunstâncias, aparecer como Rosacrucianos, como mutaçawwufin, ou em outros aspectos todavia; eles são verdadeiramente o laço vivo entre todas as tradições, porque, por sua consciência da unidade, participam efetivamente na grande Tradição Primordial, da qual todas as demais se derivam por adaptação aos tempos e aos lugares, e que é uma com a Verdade mesma.
NOTAS:
1) Embora o autor use a palavra Rosacruz para indicar tanto o movimento quanto o indivíduo, usamos em português as palavras Rosacruz e Rosacruzes para denominar um e outro, respectivamente. Mantivemos, para essa tradução, a forma usada pelo autor. (N.T.)
2) É a uma organização desse gênero a que pertenceu concretamente Leibniz; falamos em outra parte da inspiração manifestadamente rosacruciana e de algumas de suas concepções, mas também temos mostrado que não era possível considerar-lhe senão como havendo recebido uma iniciação simplesmente virtual, e por demais incompleta inclusive sob o aspecto teórico (Ver os princípios do cálculo infinitesimal).
3) Para o leitor que desconhece a terminologia oculta, podemos comparar os graus iniciáticos aos títulos acadêmicos, como Mestre e Doutor, por exemplo. Logo, Rosacruz seria um título atingido num determinado desenvolvimento da carreira “oculta”. O que muitas escolas fazem portanto, ao usar o termo “Rosacruz” é dar a escola a denominação de um título. É algo tão bizarro como encontrar uma Universidade de Doutorado São Cicrano. (N.T.)
4) Esta “lenda” é em suma do mesmo gênero que as demais “lendas” iniciáticas que já fizemos alusão anteriormente.
5) Recordaremos aqui a alusão que fizemos mais atrás ao simbolismo iniciático da viagem; pelo demais, sobre tudo em conexão com o hermetismo, há muitas outras viagens, como as que Nicolas Flamel por exemplo, que parecem ter antes de tudo, um significado simbólico.
6) Daí o nome de “Colégio dos Invisíveis” dado algumas vezes à coletividade dos Rosacruz.
7) A data exata desta ruptura está marcada, na história exterior da Europa, pela conclusão dos tratados da Westfalia, que puseram fim ao que subsistia todavia da “Cristandade” medieval para substituí-la por uma organização puramente “política” no sentido moderno desta palavra.
8) Seria completamente inútil buscar determinar “geograficamente” o lugar de retiro dos Rosacruz; de todas as asserções que se encontram sobre este ponto, a mais verdadeira é certamente aquela segundo a qual se “retiraram ao reino do Prestes João”, não sendo este outra coisa, como explicamos em outra parte (O Rei do Mundo, pp. 13-15, ed. Francesa), que uma representação do centro espiritual supremo, de onde se conservam efetivamente em estado latente, até o fim do ciclo atual, todas as formas tradicionais, que por uma razão ou por outra, deixaram de manifestar-se no exterior.
9) É muito duvidoso que um Rosacruz tenha escrito nunca ele mesmo nada, e, em todo caso, não poderia ser mais que de uma maneira estritamente anônima, posto que sua qualidade mesma a impede apresentar-se então como um simples indivíduo que fala em seu próprio nome.
10) Não é necessário indicar que a palavra (ûfî), pelo valor que a compõe, equivalente numérico de el-hikmah elilahiyah, quer dizer, “a sabedoria divina”. – A diferença do Rosacruz e dele (ûfî) corresponde exatamente a que existe no Taoísmo entre o “homem verdadeiro” e o “homem transcendente”.
11) Ademais, em árabe, esse é um dos sentidos da palavra sirr, “segredo”, no emprego particular que faz dela a terminologia “técnica” do esoterismo.
12) Isso foi assim, verossimilmente, no séc. XVIII, para as organizações, tais como a que se conheceu com o nome de “Rosacruz de Ouro”.
13) Curiosamente, na atualidade, assim como no início do séc. XVII o termo Rosacruz parece empolgar uma multidão de pessoas que nada conhecem a não ser a palavra. Do mesmo modo, inúmeras organizações usam publicamente o nome de Rosacruz indevidamente, no simples intuito de possuir um título pomposo e de usar esse nome para atrair mais membros às suas fileiras. (N.T.)