A Santa Lança, um episódio das Cruzadas

Fonte: Terra Educação

A descoberta da Santa Lança pelos cavaleiros cruzados, o instrumento mortífero que teria trespassado o corpo de Cristo quando este agonizava na cruz, numa escavação feita no interior da catedral de Antióquia na Síria, provocou uma reviravolta no sentimento dos cristãos. Até aquele momento eles, cercados pelos muçulmanos, acreditavam que o seu empreendimento, isto é, a reconquista da Terra Santa, era um causa perdida. Porém, a noticia de que haviam encontrado aquela relíquia que trazia o sangue de Jesus, incendiou os ânimos dos cruzados o suficiente para eles partirem para a arrancada final em direção à Jerusalém.

Um pedido de audiência

 

“O embusteiro é presa da fé em si mesmo; e é então esta fé que fala aos que o rodeiam com esta particular autoridade que parece milagre.”
F. NIETZSCHE
Humano, demasiado humano (aforismo 52)

Foi em antigas terras sírias, na cidade de Antióquia, recém ocupada pelos exércitos da Primeira Cruzada, que esta história se passou. O ano era de 1098. Um homem de aparência camponesa, amassando humildemente seu gorro, solicitou aos guardas que montavam sentinela na tenda do conde Raimundo, um dos chefes da expedição, o direito de vê-lo: ao conde e ao bispo de Puy. Desejava relatar-lhes um acontecimento inaudito. Os cruzados haviam tomado recentemente a cidade, mas meteram-se numa verdadeira ratoeira. Ocuparam-na mas dela não podiam sair. Lá fora um imenso contingente chefiado pelo atabeg turco de Mossul os aguardava pronto para dar o bote assim que ousassem colocar-se fora das muralhas. Enquanto isso, a soldadesca cristã era tomada de um assombroso desabamento moral. Quase ninguém mais cumpria ordens. Com exceção dos homens de confiança dos príncipes cruzados, o resto tinha-se transformado numa massa disforme, turbulenta e indisciplinada. A eles se somavam aos peregrinos miseráveis que os acompanhavam, encharcados em álcool e fanatismo, duplo material inflamável a estimular desordens. Foi em meio a essas circunstâncias dramáticas que Pierre Barthélemy, este era o nome do pobre diabo, pediu audiência a Suas Excelências. Um cronista daquela época registrou o dia: 10 de junho. Barthélemy dava seu primeiro passo para ficar na história.

A aparição divina

 

Ocorre, contou ele aos cavaleiros, que já fazia algum tempo que ele recebera a visita de Santo André que, entre tantos, o escolheu para dar instruções aos chefes cruzados. Malnascido e de fama duvidosa entre os peregrinos por suas excessivas inclinações pecaminosas, etílicas e carnais, não se sentira até então com a coragem suficiente para abordar os grandes homens que comandavam o resgate da Terra Santa. Santo André, porém, não lhe dava folga. Dotado de uma cabeleira intensamente prateada, por vezes acompanhado de um mancebo belíssimo, a aparição não parava de xingá-lo. Impaciente com a indecisão de Barthélemy, chegou a pensar em amaldiçoá-lo. Foi então que, temendo mais os furores divinos do que a soberba do conde e do bispo, ele tomou coragem para vir falar-lhes. Em sua última revelação, relatou ele aos líderes, o santo informou-lhe que a Santa Lança, a que trespassara o corpo de Cristo, estava ali mesmo, na própria cidade de Antióquia. O santo chegou a lhe mostrar o lugar antes de se evaporar nos céus. Estava enterrada no chão da catedral de São Pedro, local que os turcos haviam transformado em mesquita mas que desde a ocupação dos cruzados voltara a oficiar os sacramentos cristãos. Bastava um punhado de homens para desencavá-la. A maioria dos príncipes fez mofa quando soube da história do visionário, sem esquecerem de mencionar que os restos de uma Santa Lança já se encontravam depositados na catedral de Santa Sofia, em Constantinopla. Naqueles tempos, entretanto, relíquias duplas eram encontradas em todas as partes, restos de santos eram disputados por cidades diferentes.

Atrás da relíquia

 

Fachada da antiga catedral de Antióquia

O conde Raimundo mediu as condições e, impressionado pela veemência do relato de Barthélemy, acreditou que nada perderia se emprestasse alguns homens para que auxiliassem-no na procura. O santo fora preciso. O grupo de escavadores tinha que ter o número apostólico de doze. No dia 14 de junho, o visionário e seus homens, supervisionados pelo próprio conde Raimundo, deu início à empreitada. Marcaram o local e começaram a cavar. O buraco já ia bem fundo quando o desânimo começou a minar seus esforços. Não se encontrou nada de nada. Foi então que Barthélemy, coberto apenas por uma camisa, suado, jogou-se na trincheira aberta e, rasgando a terra com as próprias mãos, não demorando muito em saltar para fora empunhando um pedaço de ferro. Envolta em ferrugem e em negrume histórico, ele tinha certeza, lá estava ela: a Santa Lança! Quem sabe se ainda estariam grudadas nela algumas gotas de sangue de Jesus? A descoberta provocou um frêmito de fervor nas tropas. Aos magotes, os soldados jogavam-se ao chão arrependidos das arruaças e pediam perdão aos seus sargentos e oficiais. Os peregrinos, por sua vez, tomados de choro convulsivo, comprometiam-se mutuamente a não desistir de chegar a Jerusalém.
Duas semanas depois, um dos mais belicosos príncipes cruzados, Boemondo, resolveu quebrar o anel de ferro que os turcos haviam imposto a Antióquia. Numa manobra audaz, colocou suas tropas do lado de fora da cidade e atacou com furor fanático as tropas do atabeg. O olhar alucinado dos cristãos, fanatizados, deve ter impressionado os turcos, que correram espavoridos em todas as direções. As instruções de Santo André, que havia novamente aparecido para Barthélemy antes da batalha, era de que não se detivessem saqueando o acampamento de Kurbuka, o chefe turco, mas sim dar-lhe caça até a completa exaustão. No final do dia não se encontrava um só muçulmano à vista. A estrada para a Cidade Santa estava aberta.

 

A Santa Lança, um episódio das Cruzadas – Um novo profeta

 

 

O sítio de Jerusalém, ano de 1099

Barthélemy foi guindado informalmente à função de profeta. Tornou-se um dos conselheiros do conde Raimundo, a quem começou a inspirar. Sim, porque os santos, e até Cristo em pessoa, não paravam mais de falar com o homem. Em pouco tempo as rivalidades e disputas internas entre os cruzados passaram a ser arbitradas por aquele que mantinha um diálogo com o sobrenatural. A tensão entre franceses nortistas e sulistas dia-a-dia se agravava: a quem competia o comando da marcha final e qual roteiro deveria se seguir? Um capelão dos nortistas, chamado Arnulfo de Rohers, desconfiado daquela intimidade de Barthélemy com o mundo divino, deu início a uma aberta campanha contra o novo profeta. Um forte zunzum tomou conta dos acampamentos. Tudo, diziam os invejosos, não passava de encenação daquela gente sulista, pois ele, aquele pseudoprofeta, vinha da Provence, a mesma terra do conde Raimundo, a quem as visões sempre orientavam.

A prova do ordálio

 

Mouros contra cristãos

Aquela suspeita exasperou o iluminado. Se duvidassem dele, disse Barthélemy, que o submetessem a uma prova qualquer, ao julgamento de Deus que fosse. Imediatamente o clero, ciumento da ascendência que aquele pé-rapado sem eira nem beira exercia nas altas esferas, humanas e divinas, não hesitou em preparar-lhe um ordálio. Seria o teste definitivo. Que os carvões em chamas determinassem se ele falava a verdade ou não. Duas imensas pilhas de lenha foram colocadas lado a lado e incendiadas. Pierre Barthélemy abençoou-se e, vestido apenas com uma simplória túnica, lançou-se sobre o braseiro. O pobre saiu terrivelmente queimado; mesmo assim tentou retornar mas foi impedido por um espectador. Agonizou ainda por mais doze dias, quando então suspirou.
Para muitos, foi a constatação do seu charlatanismo, para outros, bem ao contrário, os restos cremados e enfumaçados do que vestia tornaram-se verdadeiras relíquias. Há, como é sabido, uma natural e humana inclinação em acreditar-se em tudo aquilo que é afirmado com energia e veemência, e esta nunca faltou ao fracassado visionário.
Uns tempos depois, em 1099, os cruzados chegaram a Jerusalém e afogaram-na num terrível banho de sangue que horrorizou para sempre os muçulmanos. Desde então, o ódio entre estes dois mundos, o Cristão e o do Islã, tem sido latente e irrefreável. É de pensar-se, por outro lado, que se não tivessem dado crédito às visões daquele embusteiro, Jerusalém não teria sido conquistada e as relações da Cristandade com o Islã não seriam tão passionais nem teriam acumulado tanto amargor neste tempo todo.

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