O Buraco da Agulha

por René Guénon -Traduzido por J. Constantino Kairalla Riemma

Como já nos referimos anteriormente, uma das representações do símbolo da “porta estreita” é o “buraco da agulha”, mencionado em especial, com essa significação, num texto evangélico bem conhecido. A expressão inglesa needle’s eye, literalmente “olho da agulha”, é particularmente significativa sob esse aspecto, pois liga de forma mais direta esse símbolo a alguns de seus equivalentes, como o “olho” do domo no simbolismo arquitetônico: tratam-se de figurações diversas da “porta solar”, também designada, por sua vez, como o “Olho do Mundo”. Nota-se ainda que a agulha, ao ser colocada verticalmente, pode ser tomada como uma figura do “Eixo do Mundo”; nesse caso, estando a extremidade perfurada no alto, há uma exata coincidência entre essa posição do “olho” da agulha e a do “olho” do domo.

O mesmo símbolo tem ainda outras conexões interessantes que foram assinaladas por Ananda K. Coomaraswamy: em um Jâtaka [relato das “vidas anteriores” de Buda], em que se trata de uma agulha misteriosa (na realidade idêntica ao Vajra), o buraco da agulha é designado em páli pela palavra pâsa. Esse termo é o mesmo que o sânscrito pâsha, que possui originalmente o sentido de “nó” ou “laço”; isso parece indicar em primeiro lugar, como observou Coomaraswamy, que, numa época muito antiga, as agulhas eram, não perfuradas como aconteceu mais tarde, mas simplesmente recurvadas de modo a formar uma espécie de alça ou anel pelo qual passaava o fio. Porém, o que há de mais importante a ser considerado por nós, é a relação que existe entre essa aplicação da palavra pâsha ao buraco da agulha e suas outras significações mais habituais, que aliás são de igual modo derivadas da idéia primeira de “nó”.

O pâsha, de fato, é com freqüência, no simbolismo hindu, um “nó corredio”, ou um “laço” que serve para apanhar animais na caça; sob essa forma, é um dos principais emblemas de Mrityu [a Morte] ou de Yama [deus dos mortos], e também de  Varuna; e os “animais” presos por meio desse pâsha são, na realidade, todos os seres vivos (pashu). Daí também o sentido de “vínculo”: o animal, desde que preso, encontra-se atado pelo nó corredio que se aperte sobre ele. Isso equivale a dizer que o ser passe pelas mandíbulas da Morte sem que estas se fechem sobre ele. O laço do pâsha é, na verdade, como diz Coomaraswamy, um outro aspecto da “porta estreita”, exatamente como o “buraco da agulha” representa a passagem através da mesma “porta solar” no simbolismo do bordade. Podemos acrescentar que o fio que passa pelo buraco da agulha tem ainda como um outro equivalente, no simbolismo do tiro com arco, a flecha que atravessa o centro do alvo; e este é, aliás, propriamente designado por “meta”, termo a propósito muito significativo, pois a passagem em questão, e pela qual se efetua a “saída do cosmo”, é também a meta que deve ser alcançada pelo ser finalmente “libertado” dos laços da existência manifestada.

Essa última observação nos leva a precisar, com Coomaraswamy, que somente no que diz respeito à “última morte”, aquela que precede imediatamente a “libertação” e após a qual não há mais qualquer retorno a um estado condicionado, o “buraco da agulha” representa a verdadeira passagem pela “porta solar”, visto que, em todos os demais casos, não se trata ainda de uma “saída do cosmo”. Entretanto, pode-se também, analogicamente e num sentido relativo, falar de “passar pelo buraco da agulha” ou de “escapar” ao pâsha, para designar toda passagem de um estado a outro, sendo sempre tal passagem uma “morte” em relação ao estado antecedente, ao mesmo tempo em que é um “nascimento” em relação ao estado conseqüente, como já explicamos em muitas ocasiões.

Há ainda um outro importante aspecto do simbolismo do pâsha do qual não falamos até aqui, ou seja, o que se refere em particular ao “nó vital”, e resta-nos mostrar como isso também se liga de forma estrita à mesma ordem de considerações. De fato, o “nó vital”constitui-se no laço que mantém reunidos entre si os diferentes elementos constitutivos da individualidade. Conseqüentemente, é ele que mantém o ser em sua condição de pashu, pois, a partir do momento que esse laço se desfaz ou se parte, sobrevém a desagregação desses elementos, o que significa exatamente a morte da individualidade, acarretando a passagem do ser para um outro estado. Transpondo o que acaba de ser dito para a situação da “libertação” final, pode-se afirmar que, quando o ser chega a passar através do laço do pâsha, sem que este o aperte e o torne a prender, é como se esse laço estivesse desatado para ele, e isso de um modo definitivo. Trata-se, em suma, de duas maneiras diferentes de exprimir a mesma coisa.

Não insistiremos mais sobre a questão do “nó vital”, que poderia levar-nos a muitos outros desenvolvimentos. Indicamos em outra ocasião como, no simbolismo arquitetônico, ele tem sua correspondência no “ponto sensível” de um edifício, sendo este a imagem de um ser vivo ou de um mundo, segundo seja considerado do ponto de vista “microcósmoco” ou “macrocósmico”. Mas, no momento, o que acabamos de dizer basta para mostrar que a solução desse nó, que é também o “nó gordio” da lenda grega, constitui-se ainda, no fundo, um equivalente da passagem do ser através da “porta solar”.

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