A MONARQUIA UNIDA: DESCONSTRUINDO O MITO DO REINO DE DAVI E A LEITURA DOGMÁTICA E FUNDAMENTALISTA DO TEXTO BÍBLICO

por Frater Melquisedeque

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Sábado, 11/06/22
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Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei!

A MONARQUIA UNIDA: DESCONSTRUINDO O MITO DO REINO DE DAVI E A LEITURA DOGMÁTICA E FUNDAMENTALISTA DO TEXTO BÍBLICO

Certa vez eu vi um meme muito curioso. Havia uma pergunta, questionando qual dos comportamentos seguintes não seria natural segundo a Bíblia: jumenta falar, um homem andar sobre as águas, um homem voltar dos mortos e subir aos céus OU um homem deitar-se com outro homem.

Sem nem ao menos entrar em argumentações linguísticas e culturais que exporiam a fragilidade de uma interpretação da passagem em questão como sendo uma proibição da relação homossexual, pretendo dar um passo um pouquinho anterior e mostrar como a Bíblia (qualquer coisa que se entenda por esse nome!) não pode ser interpretada como sendo real do ponto de vista histórico.

Essa simples mudança de olhar sobre qual o propósito do livro (livros, na verdade), já seria o suficiente para evitar toda uma hecatombe que recai sobre todos aqueles que não aceitam o que supostamente está no livro como sendo verdade inquestionável, e contribuiria para o diálogo inter-religioso e a tolerância com o diferente.

Existe uma citação famosa atribuída a Aleister Crowley (supostamente) em alguma edição do Liber ABA; entretanto, eu mesmo nunca a encontrei lá. Mas isso não a torna menos relevante ao ponto que quero ilustrar:

“A pessoa ficaria louca se levasse a Bíblia a sério. Mas para levá-la a sério, a pessoa teria de já estar louca.”

A própria cultura que gerou escritos canonizados na Bíblia Hebraica – o Velho Testamento cristão, a grosso modo – gerou subsequentemente também o Talmude, uma espécie de explicação do Antigo Testamento – e que permanece como a base do Judaísmo Rabínico contemporâneo, com ensinamentos dos rabinos que vão desde a destruição do segundo templo até o início da Idade Média aproximadamente.

Nesse compêndio de lições que se originou paralelamente ao Cristianismo Primitivo (no sentido de inicial!), podemos ver como os rabinos, há quase dois mil anos, já não se preocupavam com a literalidade dos ensinamentos, como podemos atestar em Chagigah 14b, com a história dos quatro sábios que entram no pomar.

A lição é clara: quem interpreta a escritura com a pretensão de que o texto seja um documento historiográfico no sentido atual está absolutamente fora do espírito do texto.

Não sei ao certo de quem é a seguinte frase, mas atribuo (de cabeça!) à Professora Christine Hayes do curso de Introdução ao Velho Testamento da Universidade de Yale. Considerar a Bíblia como um documento historiográfico seria equivalente a ir buscar na árvore genealógica da família real dinamarquesa um príncipe chamado Hamlet. A verdade do texto de Shakespeare não está no fato de haver existido tal príncipe, porque certamente não houve; está, sim, na verdade do drama humano experienciado pelas personagens. Assim, não sendo verdadeiro historicamente, o é sob outras perspectivas.

O chamado ao entendimento desse ponto é necessário para poder levar o texto bíblico à sério sob algum ponto de vista, já que historicamente ele não se sustenta, em vários aspectos. E esse entendimento permite que olhemos para o texto buscando uma hermenêutica que nos ajude em nossos desafios espirituais, e não tentando encontrar trechos que supostamente exprimiriam verdades ahistóricas, eternas e imutáveis sobre a natureza ou a moral.

Para ilustrar esse ponto, gostaria de apresentar um personagem específico. O rei Davi, ou David, cuja história é relatada no livro de Samuel e Crônicas. Utilizo, para apresentar uma ótica judaica, a seguinte passagem, retirada do site Morashá, mas que tem eco, por exemplo na Enciclopédia Judaica.

“Maior monarca na história judaica, líder justo e inteiramente devotado a seu povo, David foi, acima de tudo, um homem da mais profunda fé, responsável por abrir as portas do arrependimento para todas as gerações futuras.

“Um dos ‘Sete pastores’ do povo judeu, o rei David alcançou o ápice da grandeza espiritual e o Zohar o equipara aos três Patriarcas por ter sido, como eles, um homem que dedicou sua vida a servir a D’us.”

“Guerreiro poderoso e invencível, David consolidou as 12 tribos de Israel em uma única nação, forte e unida. Derrotou seus inimigos, transformando-a em uma terra segura e próspera, que legou de herança a seu filho, o rei Salomão. David deixou a todos os judeus – e a toda a humanidade – um legado de fé e coragem, o Tehilim, Livro de Salmos, bem como a dinastia real de Israel da qual sairá o Mashiach, seu descendente, que virá inaugurar uma era de paz e prosperidade para o mundo todo.”

Há vários fatos na narrativa do Rei Davi que são questões tidas como históricas, mas que, quando cuidadosamente observadas, apresentam dificuldades em se sustentar historicamente. Até mesmo quando analisamos a coerência entre os diferentes livros – Samuel 1, Samuel 2 e Crônicas, temos dificuldade em entender o que de fato estaria sendo narrado enquanto fato histórico objetivo se fossemos tentar interpretar (leia-se: violentar) o texto dessa maneira.

“Os indícios arqueológicos revisados e ou levantados nas últimas décadas revelam um início bem mais modesto para Israel e principalmente para Judá. A existência de um reino unido nos tempos de Davi e Salomão, como descrito em 2Sm -1Rs, é praticamente descartada.” (FINKELSTEIN; SILBERMAN apud DIETRICH 2020)

Em Samuel 1, 17 temos Davi matando Golias. Em Samuel 2, 21, é um soldado chamado Elhanan. Há ainda diversas outras inconsistências no texto, mas, apesar de ser algo extremamente aprazível ficar enumerando as imperfeições desse personagem, não vem ao caso.

Basta observar que os estudos arqueológicos mais recentes, que vêm sendo conduzidos desde o início do século, liderados pelo israelense Dr. Israel Finkelstein, vem desconstruindo a ideia do Rei Davi como o glorioso rei que sucede ao problemático Rei Saul e estabelece a dinastia e o reino opulento e poderoso, que posteriormente se subdividirá em Israel ao Norte e Judá ao Sul.

Em seu livro ‘O Reino Esquecido’, o Dr. Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, estabelece claramente a baixa possibilidade de que o Reino de Judá tenha sido similar ao relatado no texto bíblico em termos de poderio e prestígio na região, especialmente durante a hegemonia do Reino Israel Norte, que surgiu antes e sufocou o pequeno reino de Judá até que Israel Norte foi conquistado pelos Neo-assírios em 720 AEC.

“… é preciso entender que Israel e Judá surgiram como dois reinos separados e nunca conformaram uma unidade, antes do reinado hasmoneu (134- 63 AEC), quando Israel já não era mais Israel e Judá não era mais Judá.” (KAEFER 2020)

Parece mesmo ter havido um Davi histórico, conforme evidenciado na referência extra-bíblica da estela de Tel Dan. Contudo, ele parece ter sido um governante violento, ambicioso e inescrupuloso, que fez tudo o que podia para enfraquecer o rei a que servia, tomou o poder através de um acordo com os Filisteus (DIETRICH 2020), e que governou algo muito mais próximo de um clã do que de um grande reino, a se concluir pela falta de estruturas públicas na região em questão para o período em que esse sujeito histórico viveu, bem como densidade demográfica estimada para a região à época (FINKELSTEIN 2015 p. 184).

Contrariamente à crença religiosa, tampouco governou esse rei sobre um território correspondente às 12 tribos, mas apenas sobre o que corresponde à tribo de Judá e parte do que se atribui ao território da tribo de Benjamin.

Tive o privilégio de questionar pessoalmente o professor Israel Finkelstein, e ele deixou claro que há uma lacuna entre a tecnologia presente em Israel Norte e Judá ao Sul de aproximadamente 150 anos, e que Judá só se desenvolveu como território após a queda de Israel Norte. Provavelmente nesse período é que houve um acesso relativamente maior à escrita na região. Dessa maneira, não faz sentido atribuir a autoria dos Salmos a Davi (e Salomão), nem tampouco a autoria de Ecclesiastes e Provérbios a Salomão, conforme habitualmente faz a tradição. Em tempo, também não parece fazer sentido atribuir ao rei Salomão toda a opulência de sua corte e harém conforme as escrituras. Segundo Filkelstein, essa imagem do monarca Salomão provavelmente vem do personagem histórico Jeroboão II.

Somente pela literatura acadêmica apresentada até aqui nas pessoas dos doutores Finkelstein, Kaefer e Dietrich, já é possível perceber a discrepância entre o relato bíblico e as evidências arqueológicas que se nos apresentam.

Essas evidências impõem um desafio não somente àqueles que querem enxergar o Rei Davi como encarnando a quintessência do guerreiro arquetípico – quase um paladino a serviço de sua deidade, mas também, inclusive, desconstroem a tentativa de entender os textos bíblicos como uma espécie de registro objetivo e infalível de acontecimentos históricos de um passado glorioso de uma nação escolhida pelo único Deus, e que revela acima de tudo a intolerância ignorante e totalitária do fundamentalismo dogmático.

“ A leitura fundamentalista se constitui num suicídio teológico, além de se constituir numa traição ao seu sentido (do texto bíblico).” (ROSSI & DIETRICH 2017 p. 54)

Observe-se, entretanto, que a posição não deve ser de rejeitar o texto bíblico integralmente.

Em termos de possibilidades de utilização e investigação, ele tem, na verdade, seu uso ampliado. Em teoria, por exemplo, é cabível buscar uma análise sobre o relacionamento potencialmente homoafetivo entre Davi e Jonathan, o filho do Rei Saul. Pode-se pensar sobre as referências que o texto faz sobre a música de Davi aplacando os sofrimentos do Rei Saul e o papel terapêutico da música desde o mundo antigo – e como a questão do espírito de Saul poderia ser psiquiátrica, ou pensar a partir da ótica de refugiados de grandes tragédias sociais e dos problemas decorrentes de deslocamentos de grandes massas de pessoas, como ilustrado pela chegada dos Filisteus à região do Levante, oriundos do Egeu, e que forçou os envolvidos a conflitos pelo uso da terra ao se estabelecerem na região da atual Faixa de Gaza, etc.

Em resumo, a intenção ao apresentar a impossibilidade de se entender historicamente literal o relato bíblico da Monarquia Unida dos territórios de Israel e Judá sob a liderança do Rei Davi é mostrar que o texto bíblico nunca é feito com a intenção da realização de um registro historiográfico. É um relato escrito para um determinado período histórico e com um público específico em mente, e que apresenta camadas redacionais e uma disputa de diferentes ideologias por parte dos escribas que o escreveram e posteriormente editaram; assumir uma univocidade do texto bíblico (ou seja, todos os livros têm a mesma e única voz por detrás de si) é um erro grave de exegese. É necessário compreender que todos os textos (incluindo o cânone bíblico) são polissêmicos (possuem múltiplas possibilidades de leitura), e precisam ser entendidos como manifestações dependentes de um recorte histórico e cultural para a sua compreensão.

Furtar-se de encará-los dessa maneira é violentar o texto e impor uma leitura orientada para uma ideologia fundamentalista e totalitária. Há que haver pluralidade de leituras e opiniões.

Amor é a Lei. Amor sob Vontade.

Referências Bibliográficas
“Chagigah 14b – Talmud.” Sefaria, https://www.sefaria.org/Chagigah.14b?lang=bi. Accessed 11 June 2022.


Dietrich, Luiz Jose. “Davi: um homem conforme o coração de Javé?” REVISTA PISTIS & PRÁXIS: TEOLOGIA E PASTORAL, vol. v. 12, 2020, pp. 276-298, https://periodicos.pucpr.br/pistispraxis/article/view/27077/24423. Accessed 11 06 2022.


Finkelstein, Israel. O Reino Esquecido. 1ª edição ed., São Paulo, Paulus Editora, 2015.

Finkelstein, Israel. “Webinar ‘Jeroboão II e o início da historiografia bíblica em Israel.’” https://www.youtube.com/watch?v=nVFaC-7_4xY&t=7164s. Accessed 11 06 2022.

Hirsch, Emil G., et al. “DAVID – JewishEncyclopedia.com.” Jewish Encyclopedia, https://www.jewishencyclopedia.com/articles/4922-david. Accessed 11 June 2022.

Kaefer, José Ademar. “Quando Judá se torna Israel.” Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., vol. v. 12, 2020, pp. 391-409. Academia.edu, https://www.academia.edu/43851198/Quando_Jud%C3%A1_se_torna_Israel_When_Judah_becomes_Israel. Accessed 11 06 2022.

“Lecture 1. The Parts of the Whole.” YouTube, 3 December 2012, https://www.youtube.com/watch?v=mo-YL-lv3RY. Accessed 11 June 2022.

“PROFETAS E SÁBIOS – David, Rei de Israel.” Morashá, http://www.morasha.com.br/profetas-e-sabios/david-rei-de-israel.html. Accessed 11 June 2022.

Rossi, Luiz Alexandre Solano, and Luiz José Dietrich. Bíblia: Comunicação de Deus em Linguagem Humana. 1ª ed., São Paulo, Paulus, 2017.

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